A mulher minhota, por João da Rocha (2)


Conduzindo os bois
Segunda parte da "monografia regional" de João da Rocha sobre a mulher minhota, publicada em 1910 na Ilustração Portuguesa, com fotografias de Emílio Biel & C.ª, onde o autor nos diz que:

não há ninguém como ela para amanhar uma ceia, tecer o linho, urdir, fiar. cantar, puxar os cordões à bolsa, calcular, rezar e descompor alguém.


A espadelada.

Monografias regionais portuguesas

A mulher minhota (2)
A MULHER COMPANHEIRA DO HOMEM — FESTAS E TRABALHOS AGRÍCOLAS
O celeiro do Alto Minho é Coura, terra das papas, paraíso da boroa. Como por lá o terreno é mais fundo e húmido, as colheitas fazem-se no S. Martinho, e sangra-se Cristo sem escrúpulo. São as martinhadegas. Parece que o nome explica os usos. E de facto explica. As mulheres entram com os homens nas malhadas e com eles manejam, alternadamente, os manguais. Nos terrenos menos fundos e mais secos, pelo leste do Minho, as malhadas fazem-se mais cedo: e mais cedo ainda, em Setembro, pelo S. Miguel (dia santo em todas as aldeias minhotas), faz-se a esfolhada. Esfolhear o milho consiste em descamisar-lhe a espiga. Devia ser um trabalho enfadonho. Pois não é. Por toda a parte é uma pandega de truz. No coberto ou na eira reúnem-se os vizinhos à gente da casa, e não faltam à festa as cachopas bonitas com os seus conversados. Sentam-se todos no chão ou onde Deus quer, numa grande roda. Canta-se ao desafio, conversa-se e quando aparece o milho-rei corre o seu possuidor a roda a colher abraços da sociedade. Às vezes irrompe do escuro uma mascarada pitoresca. Dança-se e ceia-se. Come-se bacalhau ou sardinhas, a boroa, um caldo de couve com feijão; bebe-se a pinga do Senhor; e, como às vezes o amor e o vinho fazem suas, não é raro acabar tudo à meia noite com muita pancadaria. Nas malhadas de centeio, mais montanhesas, cada infusa de verde é acolhida com vivas desengonçados a que chamam apupos. Mas quanto mais os manguais trabalham mais a fome aperta. Por isso, antes do meio-dia, cai na cozinha um grupo de malhadores, cocando a comida ou as mulheres. Mas estas não são pecas: brigam com eles — defendendo-se a tição, com a pá do forno, a braço, como calha — e expulsam-nos para a eira com grande alarido. Ao arrumar da palha, arma-se um mono representando uma velha a cujo enterro se procede imediatamente, indo atrás o viúvo como carpideira.
A mãe.
Não são estas, porém, as únicas festas agrícolas da região. Há as lavradas pela Páscoa. E em Junho, foucinha no punho, lá vai tudo para as veigas segar o trigo e o centeio. Depois da apanha do linho, faz-se também, pelo S João, a espadelada. Todas as cachopas, com o seu cortiço ao lado e de espadela na mão, trabalham como formigas e cantam como cigarras. Vão-se chegando os rapazes, que se prantam de roda, encostados aos varapaus. Surge, de repente, o tocador, com o cavaquinho ou o harmónico; e lá se abandonam os cortiços e se pousam as espadelas, porque já as moças, a mailos moços — vira que vira, entram na dança, de mãos erguidas, enquanto os velhos saboreiam a pinga, limpando a boca às costas da mão. Nas vindimas canta-se também, está visto, mas, depois das maceiras terem deitado as uvas nas dornas ou nos lagares, o mulherio retira-se prudentemente, porque o resto, cá no Minho, é só para homens. São os homens, de calças arregaçadas, e alguns mesmo sem calças, que vão pisando os cachos, enquanto a ceia se faz e a vela de sebo dura acesa.
O Inverno aproxima-se, com o seu cortejo de chuvas e ventanias. Ora o frio esperta o estômago. É preciso arranjar presigo que aquente. Como no dia de Santo André quem não tem porco mata a mulher, convém evitar a viuvez, sacrificando, sobre o banco esguio, à faca do matador, o cevado que no chiqueiro grunhe. A matança é um caso complicado que demanda conhecimentos domésticos. Até à dependura do porco e ao preparo da salmoura mestrejam os homens, mas os cuidados culinários do sarrabulho cabem às mulheres. O mulherio da casa e da vizinhança junta-se na cozinha a petar cebola para os chouriços, a fazer os rojões, a bater o sangue para o arroz de sarrabulho, a preparar o lombo e a colada, a lavar as tripas, a encher as farinheiras ou as alheiras, a depenar o galo (porque sem galo não há sarrabulho que preste) e a compor a vinha-de-alhos, enquanto as crianças contemplam a bexiga que, perto do lume, seca dependurada. Isto porque, nas casas boas das aldeias, o jantar de sarrabulho, bem regadinho de verdasco desde a canja até ao lombo, dura horas que nem Deus conta, e para mais, quase sempre com o senhor pároco à cabeceira.
A malha do milho.

Assim o homem se prende à terra e a agricultura e os cuidados caseiros entretêm a mulher. Mas sem os bois como se há de lavrar o campo? Quem dá o leite, senão as vacas? Não é também só de linho que se há-de compor o bragal. A lã dos carneiros e das ovelhas aquece mais. no Inverno, que o vinho das infusas. Os animais auxiliam o lavrador. É raro o que não sustenta bois, próprios ou tomados a ganho. Mas, além dos bois. há os porcos, as galinhas, as cabras, as ovelhas, o cão, que vigia toda a noite no quinteiro, o gato, que se enrosca na quentura do lar. É a mulher, quase sempre, que trata dos animais: encurrala as cabras e as ovelhas, faz a cama ao gado, tira o leite às vacas, escalda o farelo para as galinhas, prepara a lavadura para os porcos. Além disto. trabalha no campo como qualquer homem, em especial a casada de poucas posses, ou ocupa o tempo em indústrias caseiras, como a tecelagem e a fiação. quando se trata duma festa, não há ninguém como ela para enfeitar um arco de flores, para adornar um altar, para animar um leilão de prendas com segredinhos disputados, como não há ninguém como ela para amanhar uma ceia, tecer o linho, urdir, fiar. cantar, puxar os cordões à bolsa, calcular, rezar e descompor alguém.
João da Rocha, Ilustração Portuguesa, n. 216, Lisboa, 11 de Abril de 1910
Fotografias de Emílio Biel  C.ª

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