A muralha de Guimarães no início do século XX. |
No segundo texto das
suas Leves considerações arqueológicas, publicadas no jornal Alvorada, no início de 1911, quando a República
portuguesa ainda estava a dar os seus primeiros passos, Jerónimo de Almeida
debruça-se sobre o que ainda sobrava da muralha dionísia, que se ergueu para
cercar e proteger o burgo medieval vimaranense. Um texto que é um precioso
testemunho da consciência da importância da preservação do património
histórico, que já naquele tempo prevalecia em Guimarães, e que não dava grandes
concessões ao advento da mentalidade supostamente modernizadora que, noutras
paragens, ia dando uso ao camartelo para derrubar tudo que era velho e inútil.
Breves considerações arqueológicas — II
Os muros da cidade
Desse antigo cinto
de muralhas erguidas pelo rei D. Dinis e que outrora apertavam o casario do
burgo de Guimarães, raros vestígios existem hoje de pé que nos possam descrever
a linha que seguiam. O único trecho visível delas ainda, ladeia a estrada de
Fafe desde o campo da Feira à ura de Santa Cruz, e é digna de notar-se a sua bela
conservação. A porta que há tempos lhe abriram foi um sinal de alarme para a
velha construção, estimulando novos vandalismos! Poupe-nos o município de
Guimarães, lembrando-se que do passado é um nobre dever conservar memórias; compreendo
que esses muros não têm utilidade prática, mas utilidade histórica, e em nada prejudicam
o moderno aformoseamento da cidade, antes são um contraste pitoresco. Arrasem
aqui o que de antigo e curioso perdura e veremos a cidade reduzida a meia dúzia
de casas sem arquitectura nem elegância, numa esquadria monótona. De moderno só
possuímos, que se recomende e de subido valor — o edifício da Sociedade Martins
sarmento. Nada mais.
E esta forte razão
vem secundar ainda a primordial — que é a razão arqueológica de se proceder a
uma desvelada conservação e restauração da arte antiga nos monumentos ou
qualquer padrão menos valioso, mas igualmente testemunho duma época histórica.
Cumpre, portanto, como sagrada devoção de patriotismo, não derrubar esse curto
trecho de muralha que aí ressurge [de] lutas heróicas e sangrentas.
Idêntica reconstrução
àquela que aconselhei falando do castelo, devia efectuar-se nestes muros,
desnudando as suas ameias da caliça e pedra que encobrem muitas delas, e assim
melhor ressalte a sua beleza, quando à distância essas ameias de granito
semelham o gume dentado duma serra.
Para fazer se uma
vaga ideia do que outrora fosse, completamente intacta, essa arrogante defesa
da vila, basta lembrar a área que percorria o pano dos seus muros, partindo do
lado sul do castelo pela rua de Santa Cruz abaixo, estrada de Fafe, Trás-o-Muro
até ao Toural (onde no alto dos quais o povo desfrutava as corridas de toiros
que fora se exibiam, então), rua de Santo António, estrada dos Palheiros acima
até se ligarem de novo pelo lado do poente com o castelo. Tinham umas nove
portas e vários torrilhões e de dentro deles se fazia a defesa da vila, como
tão heroicamente o provaram esses portugueses coevos do princípio da
nacionalidade, na Idade Média.
E para que se ateste
sempre ufanosamente — berço da pátria portuguesa, esta linda terra — é
necessário e indispensável que esses raros documentos ancestrais ainda hoje
vigentes, embora em estado de ruína, se conservem e se venerem, porque
Guimarães, mesmo com verdejantes jardins e airosas ruas, terá sempre que
considerar-se, pelo seu carácter predominante, não uma cidade moderna
geometricamente delineada, — mas uma cidade caracteristicamente medieval, do
tempo dos grandes senhores do feudalismo, descendentes directos dos cruzados,
com o seu alcácer, o seu templo gótico, as suas casas brasonadas e os seus
alpendres...
E não se depreenda
que eu sou um amante de velharias, um
ingénuo bricabraquista armazenador de
alfarrábios com capa de pergaminho, loiça barata da Índia e jóias falsas de filigrana...
Pretendo unicamente que se respeite a arqueologia da minha terra, no culto da
Arte, como este povo amava e ama ainda os seus ídolos e os seus santos...
Jerónimo de Almeida.
Alvorada, 18 de
Fevereiro de 1911
0 Comentários