Conferência de Manuel Mendes no âmbito das comemorações do centena´rio de Raul Brandão. Santos Simões, à direita, apresenta o conferencista. |
Em
1967, a alma mater das celebrações do
centenário do nascimento de Raul Brandão em Guimarães, que tiveram o Círculo de Arte e Recreio como epicentro, foi Santos Simões. Sobre as
comemorações de 1967, falaremos um destes dias. Hoje deixamos aqui um texto que
saiu no número especial do suplemento Artes
e Letras que acompanhou a edição de 19 de Março de 1967 do jornal Notícias de Guimarães, de que Santos
Simões é autor.
RAUL
BRANDÃO E GUIMARÃES
A
importância de uma cidade ou região, ou de um país, se se mede pelo grau de prosperidade
dos seus habitantes e pelo seu global potencial económico, só alcança, no
entanto, verdadeiro prestígio e natural projecção para além dos respectivos
limites geográficos, à custa de uma irrefragável e dominante valia histórica,
das constantes morais e tradicionais que constituem o seu bragal e dos valores
culturais enraizados na terra e nas gentes, reveladores dum alto poder criador
bem embebido em húmus e sangue, sua vida e carácter.
Guimarães
constitui um expressivo exemplo de trabalho artesão e de trabalho intelectual
através dos séculos. A pena irmã da
enxada, escreveu o Poeta. A força e o querer destas gentes que servindo,
mais do que servindo-se, tem possibilitado uma expansão industrial cujas
sombras, ano após ano, se projectam cada vez mais perturbantemente sobre a apagada e vil tristeza do Minho rural; e
as pedras angulares duma cultura, que aqui tem raízes seculares poderosas: Gil
Vicente, Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Abel Salazar e tantos, tantos
outros, plataformam e expandem, carreiam seiva e dão frutos, enriquecem e
prestigiam uma terra, uma região e um país.
Não
causa, por isto, estranheza, que Guimarães, este ano, reverdeça mais cedo nos
seus campos, se engrinalde das suas mimosas, o tojo forre de ouro velho os
enegrecidos montes, os homens acordem do ruído das máquinas ou emerjam do bafo
quase primaveril da terra, para festejar o escritor dos humilhados e ofendidos:
Raul Brandão.
E
quer o imaginemos de copa negra hamletiana percorrendo as ruas de Lisboa, quer
o acompanhemos nos estreitos caminhos entre o Alto e Martim trajando
desataviadamente, adivinhamos, instante a instante, o gesto repetido do
prestidigitador que faz aparecer e desaparecer o pequeno canhenho de capas
pretas luzidias, onde furtivamente recolhe as impressões instantâneas, reais, constituindo-se
fiel guardião da pluriformidade por que se manifesta o “ser”. E na sua tebaida
do Alto, a lenha a crepitar e a encher a cozinha transformada em escritório de
fantásticas sombras vermelhas e negras, todo o real, indiscriminadamente
registado, vai ser lançado na retorta do alquimista para sofrer a transformação
criadora, a construção de um mundo de fantasmagorias e angústias onde freme o “existir”.
Estranho
e altíssimo Poeta, este, que nasceu no Porto, mas que desejou efectivamente a
cidadania vimaranense ao entregar à fiel guarda de Guimarães a sua biblioteca e
o seu corpo.
Nesta
hora alta de evocação e homenagem a um grande
de Portugal, honra e orgulho de Guimarães, cabe aqui, muito justamente,
recordar a memória de Duarte do Amaral, o camarada e o amigo, que trouxe Raul
Brandão até esta cidade, e saudar Aquela que é hoje a sua veneranda viúva, a Sra.
D. Maria Angelina Brandão cujos encantos prenderam o Escritor para sempre a
esta Guimarães que ele quis que fosse a sua terra.
Que
todos saibamos ser dignos da honra que que nos concedeu.
Artes e Letras, suplemento do Notícias de Guimarães, 19 de Março de 1967
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