1867 — 12 de Março — Nasce Raul
Brandão, de seu nome completo Raul Germano Brandão, na freguesia da Foz do Douro,
Bairro Ocidental, Porto. Filho de José Germano Brandão, pescador, e de
Laurentina Ferreira de Almeida.
Guilherme
de Castilho, Vida e Obra de Raul Brandão,
p. 497
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Brandão” e “filho e neto de” devolve bem mais de 4.000 resultados, desde a
omnisciente Wikipedia
ao novo portal dedicado ao
escritor da Casa do Alto, em boa hora criado no âmbito das comemorações dos 150
anos do seu nascimento, que recomendo vivamente, passando por inúmeras
páginas institucionais, literárias e de órgãos de informação. Todas elas atestam
que Raul Brandão era filho e neto de pescadores, ou de homens do mar, ou de
gente do mar, ou de marítimos. Seria assim?
***
Passam hoje 150 anos
sobre o nascimento de um dos autores mais marcantes da literatura de língua
portuguesa do século XX, Raul Brandão. A sua obra, profundamente inovadora, tem
sido objecto do interesse de inumeráveis estudiosos, que muito têm contribuído para
o aprofundamento do conhecimento da escrita densa, complexa e com uma fascinante
dimensão poética, permitindo perceber de que modo influenciou a escrita contemporânea
ao quebrar fronteiras entre géneros literários e ao quebrar com os cânones da
continuidade do espaço e do tempo narrativo. No entanto, continuámos a saber
relativamente pouco acerca da biografia de Raul Brandão.
O que encontrámos,
por toda a parte, escrito sobre o curso da vida de Raul Brandão reproduz, no
essencial, o que escreveu Guilherme de Castilho, no seu volumoso estudo
biobibliográfico Vida e Obra de Raul Brandão,
editado pela primeira vez em 1979, que abre assim:
Foi na Foz do
Douro, a 12 de Março de 1867, que nasceu Raul Brandão. E aí, nessa terra onde
rio e mar se juntam, há-de decorrer a infância, a mocidade e a adolescência do
escritor.
Filho e neto de
homens do mar, o mar será também para ele sempre presente, a que amorosamente
corresponde, desvendando o segredo das suas cores, retratando em corpo e alma a
gente humilde que dele vive.
É sabido que Raul
Brandão dedicou ao seu avô materno a sua obra Os Pescadores (À memória de meu avô, morto no mar), onde escreve, logo nas primeiras páginas:
Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida
esperou-o desde os vinte anos até
à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam
aos pés, até aos cabelos brancos
com que foi para o túmulo.
Raul Brandão era
neto de um homem do mar. Tinha um fascínio infinito pelo mar (Quando regresso do mar venho sempre
estonteado e cheio de luz que me trespassa). Mas seria filho e neto de
pescadores?
Brandão, tendo
nascido a 12 de Março de 1867, foi baptizado a 31 de Maio. Era filho de José Germano
Brandão, da freguesia da Sé, e Laurinda Laurentina Ferreira de Almeida Brandão,
da freguesia de S. João da Foz do Douro, tendo como padrinho o avô paterno,
José da Cruz Brandão, e, como madrinha, a avó materna, Margarida Firmina
Ferreira de Almeida, viúva de João Monteiro de Almeida. É a este último que
Raul Brandão dedica Os Pescadores.
João Monteiro de
Almeida era, certamente, um homem do mar, embora não pareça muito rigoroso
atribuir-se-lhe a condição de pescador. Era proprietário de um lugre, um navio de
três mastros dos que serviam em pesca a longa distância, nomeadamente do bacalhau
da Terra Nova e do Labrador. Segundo Raul Brandão, terá partido em viagem, pela
última vez, quando a sua esposa tinha 20 anos, e nunca mais regressou. Pelos
registos dos nascimentos, casamentos e óbitos referentes aos membros do lado
materno da família de Raul Brandão, percebe-se que era gente com uma condição
social bem acima da dos pescadores. Tanto a mãe como a avó sabiam ler e
escrever, o que, à época, não era muito comum entre as mulheres. As suas
assinaturas não deixam transparecer as hesitações e as tremuras que
caracterizam as pessoas mais iletradas. Note-se, por outro lado, que as
mulheres desta família recebem o tratamento de “dona”, sinal de distinção
social a que não tinham direito as mulheres das famílias de pescadores. Acresce
ainda que os membros desta família aparecem sempre classificados como
proprietários, designação que, regra geral, era atribuída a quem vivia de
rendimentos de bens imóveis, que não resultavam directamente do exercício de um
ofício, e que dificilmente seria usada em relação a um simples pescador.
Quando nasceu o pai
de Raul Brandão, José Germano Brandão, em 20 de Maio de 1843, os seus
progenitores, José da Cruz Brandão e Dona
Doroteia Honorato Brandão, viviam no n.º 20-A do largo do Colégio da Sé do
Porto. O registo de baptismo não indica a profissão do pai, mas, por um
documento de 1846, sabemos que era oficial de secretaria na Santa Casa da
Misericórdia do Porto. Pelo registo do casamento dos pais de Raul Brandão, que se celebrou a 10 de Maio de 1846, na freguesia de Miragaia, ficamos
a saber que a família paterna residia no Hospital de Santo António, onde o seu
avô exercia o ofício de fiscal.
A ideia de que Raul
Brandão interrompe uma linhagem de pescadores, cujos últimos membros teriam
sido o seu avô e o seu pai, que vemos repetida vezes sem conta, é contrariada
pela sua ascendência paterna.
Quando Raul Brandão
nasce, a 12 de Março de 1867, não vem ao mundo como filho de um homem do mar, muito
menos de um pescador, mas simplesmente de um homem que exercia em terra firme o
ofício que ficou inscrito no registo de baptismo: negociante.
Registo de nascimento de Raul Brandão. Fonte: Arquivo Distrital do Porto. [Tocar na imagem para ampliar] |
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