Raul e Maria Angelina Brandão, por Columbano Bordalo Pinheiro. Da colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea. |
No início de Junho de 1896, o “ilustrado alferes de
infantaria, primoroso escritor e literato lisbonense” Raul Brandão apresentou-se
no 1.º batalhão do Regimento de Infantaria 20, estacionado em Guimarães, sendo
saudado pelo redactor de O Comércio de Guimarães como um “talentoso colega”,
redactor do jornal “Correio da Manhã”, que, em Lisboa, integrara uma comissão
que tinha como tarefa escrever a história da Guerra Peninsular. Vinha para
cumprir os dois anos de serviço efectivo a que estava obrigado para poder
ascender ao posto seguinte da carreira militar. Mal imaginava que chegava para
ficar.
Alguns dias depois, teve um encontro que mudaria o seu destino.
Encontrou Maria Angelina, uma rapariga que, nos seus 17 anos, não deu mostras
de se deixar enredar na teia que lhe teceu o alferes que, alto, loiro e de
olhos azuais, tinha visos de príncipe escandinavo. O cerco de Raul a Maria Angelina
durou dias de longas horas de espera e um par de cartas de um romantismo a
escorrer para o pindérico, surpreendente no autor que integrou o grupo de cínicos
portuenses que se auto-denominavam de nefelibatas.
O enamoramento tinha os seus trâmites, feitos de suspiros, recusas e promessas
veladas, que Maria Angelina não dispensou e a que faltaram alguns versos em que
ninguém reconhecerá como tendo saído da pena do escritor da Casa do Alto, que construiria uma imensa obra poética, mas que não era dado a versejar:
ESQUIVA
Quando te busco, foges
sempre. Acaso
Temes, meu anjo! que te creste as asas
Esse fogo de amor em que te abrasas?
Este fogo de amor em que me abrasas?
Porque eu bem sei que muito embora oculto,
Por este amor, dás-me também amor.
—
Almas talhadas
para
a mesma dor,
—
Professamos os
dois o mesmo culto...
Sei que pensas em mim, do mesmo modo
Que penso em ti, ó dona dos meus ais...
Sei que os nossos desejos são iguais
E formam os nossos corações um todo...
Não percebes a vida, nem a posse
Do meu amor, como eu não percebo
Sem a esperança que em teus olhos bebo,
E em teus sorrisos, minha pomba doce!
Na tua esquivança
não abrandas
Se longe um do outro andamo-nos
buscando,
—
Tu, minha
amada! os beijos que te mando.
—
Eu, minha vida!
os beijos que me mandas
No entanto todos sabem que me evitas,
E riem, riem deste sonho meu...
Doudos! que importa que me fujas?
Eu Vivo contigo, e tu comigo habitas?
Foges-me? A sorte que prazeres cria
E a muitos só concede a noite,
Fadou-me para ti — como fadou-te,
—
Não fujas mais!
para ser minha um dia!
A primeira vez que Raul Brandão conversou com Maria Angelina
foi na festa de S. João, naquele mesmo mês de Junho de 1896. Naquele ano, teve
quermesse, bandas de música, fogo de artifício e balões iluminados no Campo da
Feira. A principal atracção foi um enorme balão, pintado e decorado pelo artista
Domingos José da Costa, a quem chamavam o
Véstia. O arraial durou até à uma da madrugada, não faltando grupos que
percorreram as ruas da cidade com os seus descantes, acabando muito por
convergir no lugar da Fonte Santa.
Tudo apontava para que o namoro fosse longo. No entanto,
não passaria um ano até que Raul e Maria Angelina se casassem na igreja
paroquial de Nespereira. Foi numa quinta-feira, dia 11 de Março de 1897. O
noivo completaria 30 anos no dia seguinte. A noiva ainda ia nos 18 anos. Passam
hoje 120 anos.
O registo de nascimento é um documento muito interessante,
quer pela condição da noiva (era tutelada
pelo padrinho de baptismo, António Coelho da Mota Prego, com quem residia
na casa de torre do terreiro da Misericórdia), quer porque nele aparece como
testemunha um tal Armando Brandão, negociante na cidade do Porto, que será irmão de Raul Brandão e cuja existência, confessamos, desconhecíamos.
Voltaremos a este documento. Aqui fica:
Aos onze de Março do ano de mil oitocentos noventa e sete,
nesta igreja paroquial de Santa Eulália de Nespereira, concelho e Guimarães,
diocese de Braga, com autorização do Excelentíssimo Arcebispo Primaz datada do
dito mês e ano, na minha presença, com autorização do mesmo Arcebispo Primaz
concedida no diploma referido, compareceram os nubentes Raul Germano Brandão e
Dona Maria Angelina de Araújo Abreu, os quais sei serem os próprios, com a
dispensa de proclamas concedida por diploma do dia cinco do mesmo mês e ano, e
sem impedimento algum canónico ou civil, ele de idade de vinte e nove anos,
solteiro, alferes de Infantaria número vinte estacionada em Guimarães, natural
da freguesia de São João da Foz do Douro, concelho e diocese do Porto, filho de
José Germano Brandão, negociante, natural a freguesia da Sé, Bispado do Porto,
e de Dona Laurinda Laurentina Ferreira de Almeida Brandão, natural da freguesia
da Foz do Douro, concelho do Porto, e ela de idade de dezoito anos, solteira,
tutelada do Doutor António Coelho da Mota Prego, com quem reside no campo
Franco Castelo Branco, freguesia de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães,
onde nasceu e foi baptizada, filha legítima do Doutor Manuel Bernardino de
Araújo Abreu, natural da freguesia de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães e
de Dona Joaquina Rosa Alves de Lima Pereira, também conhecida por Joaquina Rosa
Pereira de Abreu, natural da freguesia de S. João de Brito, concelho de
Guimarães, diocese de Braga, os quais nubentes se receberam por marido e mulher
e os uni em matrimónio, procedendo em todo este acto conforme o rito da Santa
Madre Igreja Católica Apostólica Romana, e celebrando a bênção do anel nupcial.
Foram testemunhas presentes, que sei serem os próprios, Dona Maria da Conceição
de Araújo Abreu Pinheiro Torres, casada, residente em Guimarães, Dona Teresa
Elvira Magalhães Brandão Mota Prego, casada, moradora no dito campo Castelo
Branco e freguesia da Oliveira, Dona Maria Angelina Coelho Mota Prego,
solteira, moradora no dito campo e freguesia, Armando Brandão, casado,
negociante na cidade do Porto, Doutor António Coelho da Mota Prego, casado,
Manuel Bernardino de Araújo Abreu, académico, morador no dito campo Castelo
Branco, António Maria Pinheiro Torres, casado, Delegado do Procurador da Coroa
e Fazenda em Cabo Verde, morador em Val de donas da dita da Oliveira. E para
constar lavrei em duplicado este assento que, depois de ser lido e conferido
perante os cônjuges e testemunhas com todos assino. Ressalvo a entrelinha que
diz — com e também a emenda — Pinheiro. Era ut supra
Maria Angelina
de Araújo Abreu
Raul Germano
Brandão
Teresa de
Magalhães Brandão Mota Prego
António Coelho
da Mota Prego
Sebastião
Augusto de Magalhães Brandão
Manuel
Bernardino de Araújo Abreu
António Maria
Pinheiro Torres
Abílio Severino
Ribeiro de Magalhães Brandão
José Bernardino
de Araújo Abreu
Manuel Gaspar
Coelho da Mota Prego
Declaro que a nubente Dona Maria Angelina de Araújo Abreu
foi autorizada a contrair este casamento por alvará de onze do dito mês e ano.
Era ut supra.
O reitor,
Bernardino Fernandes Ribeiro de Freitas
[FONTE: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Guimarães]
[FONTE: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Guimarães]
2 Comentários
Obrigado.
Joaquim Pinto da Silva
Peço desculpa por só responder agora. O registo de casamento reparte-se por quatro páginas do livro de assentos de casamento da freguesia de Nespeira, que se encontram nos três ficheiros cujas ligações indico abaixo (começa ao fundo da página da direita do primeiro ficheiro):
http://archeevo.amap.com.pt/viewer?id=182577&FileID=94151
http://archeevo.amap.com.pt/viewer?id=182577&FileID=94152
http://archeevo.amap.com.pt/viewer?id=182577&FileID=94153
SAudações Cordiais
António Amaro das Neves