Recorte de O Estado de S. Paulo de 23 de Outubro de 1955. Tocar para ampliar. |
Em meados da
década de 1950, no seu exílio no Brasil, Jaime Cortesão publicou no jornal O Estado de S. Paulo, numa das suas “Cartas
de Portugal”, um texto belíssimo sobre o Minho, a sua cultura, a sua história, a
sua paisagem e as suas gentes, com o título “Graças ao Minho e ao seu Povo”. É
um retrato do Minho tal como o historiador o conheceu, e que, no essencial, ainda
perdura. Inicialmente publicado a 23 de Outubro de 1955, seria logo em seguida republicado
no Diário de Lisboa de 25 de Novembro de 1955, com pequenas
alterações, um par de gralhas e um título encurtado (sem a menção ao povo do
Minho). Teve nova publicação no Notícias de Guimarães de 4 de Dezembro daquele ano, que transcreveu a versão
do Diário
de Lisboa. Transcorrida uma década, irá figurar
no volume dedicado ao Minho da Antologia da Terra Portuguesa, organizado por Luís Forjaz Trigueiros, com o título “A Paisagem
Minhota”.
Uma leitura
que se recomenda. Aqui fica, na versão inicial de O Estado de S. Paulo.
Graças
ao Minho e ao seu Povo
No arco-íris das províncias portuguesas,
o Minho, por mais densamente povoado e trabalhado desde as idades
pré-históricas, é também a mais rica em testemunhos vivos e monumentos duma
cultura recebida ou própria; e, desde logo, a mais arcaica e a mais florida, a mais
católica e a mais pagã.
Combinaram-se o mar e as serras para alargar-lhe
o anfiteatro atlântico. Copiosas mais que em alhures, as chuvas descem-lhe pelos
degraus numa cascata de fontes, córregos e rios. E, de bastos, os homens
repartiram-lhe a terra e cobriram-na com sua manta de retalhos verdes e
jardins, para remendo e enfeite da pobreza.
Talvez em parte alguma de Portugal a
terra moldasse o homem e o homem moldasse a terra tão mútua e intimamente como
no Minho. O mar, a veiga e a serra multiplicaram e combinaram, fundindo-os, os
géneros de vida. Se a multicultura, num solo pobre e faminto de adubos, marcado
com predominância pelo milho e a vinha, ocupa de preferência, desde o nascer ao
pôr do Sol, as fadigas do minhoto, os pescadores do rio e do alto atiram o lanço
das redes desde o litoral à Terra Nova; os sargaceiros arrancam ao mar os
sargaços e a bodelha para nutrir as terras magras;
a pastorícia alarga-se ainda, como outrora, pelas serras do Gerês,
da Peneda, do Soajo ou da Cabreira; e um artesanato múltiplo funde muitas vezes
o artífice com o artista nas obras-primas dos alvenéis, dos oleiros, das
rendeiras, dos ourives e imaginários.
Nota mais típica da paisagem minhota,
tão intensamente composta pelo homem, a vinha ora se alastra em latadas e se
endireita nos bardos, ora, e principalmente, a vinha de enforcado trepa e se enrosca às
árvores, enquadra os milheirais e ladeia com grandes tirsos as estradas, que transforma
em alamedas de gala para cortejos triunfais. A completar a idílica paisagem, a
dar carácter à estrutura social do Minho, na vida rural a mulher impera. Ela
arroteia a terra, ela sacha, cava, rega, lavra e, de aguilhada em punho, guia
os carros de bois, de cangas altas e vistosas como altares. Só por si, a lavradeira
(dir-se-ia que no Minho não há lavradores) dá sentido poética ao
grande quadro verde com as graças duma écloga.
A morada rural dispersa-se por veiga e
vale, à beira dos caminhos e do perene veio de água, que lhe rega a horta e o
pé de alfádega cheirosa. A casa típica, de granito e carvalho, aproxima ou funde
numa só, a modos de presépio, a vivenda humana e o curral do gado. Uma escada
de pedra, desguarnecida e de um só lanço, sobe ao longo da fachada à varanda de
madeira, coberta com alpendre, por onde se entra ao sobrado. Nos cachorros e
canteiros das janelas e varandas, enramados pela vinha, cravos vermelhos e
raiados dão bons dias festivos a quem passa. E, ao lado, os espigueiros com patas
de granito, tantos deles encimados pela cruz, erguem-se como sacrário de pão,
tornado humana eucaristia.
Nem sempre o minhoto ocupou a terra e o
mar pela mesma jorna de hoje. Algum tempo, na multimilenária pré-história, os
povoados assentaram apenas sobre os cerros, isolados como ilhas no mar das
selvas, que baixavam da encosta até aos vales, onde os rios rolavam águas mais
fundas ou os pântanos espelhavam a toalha líquida, pululante de vida.
Nas comunidades agro-pastoris desses
castros ou citânias, era mínimo o agro, mas os terrenos de caça e de pastio
dilatavam-se pelas quebradas da montanha. Assim, reunidos por detrás do recinto
amuralhado, vieram os romanos, desde o século I antes da era cristã, encontrá-los e obrigá-los a
descer, após uma luta secular, aos vales e à planície.
Foi nesse longo período duma vida que
oscilou entre serrana e campesina, mas onde o campo pouco a pouco alcançou o
primeiro lugar, que o homem, para conservar as suas reservas pecuárias, foi
obrigado a entregar-se à pastorícia a distância; ou teve que engrossar as hostes
dos romanos, suevos e cristãos da Reconquista da marcha colonizadora para o Sul;
e que a mulher assumiu os cuidados da casa, o amanho da horta e até a lavra da vessada.
Então, aparece uma espécie de matriarcado, cujos traços se esfumam no
pretérito, e nasce aquele tipo de lavradeira, único em terras
de Portugal, que inspirou os cantares de amigo e que,
vestida com o seu traje de festa, tem a opulência e a majestade duma soberana
de direito.
Religioso, duma
religião em que o cristianismo e as superstições da magia
ancestral se dão as mãos, o minhoto construiu e multiplicou pela província
conventos e igrejinhas românicas, cujo carácter austero e rude o granito
acentua, templos manuelinos ou barrocos, ermidas nos altos e, mais que tudo, à
beira das entradas, as capelas de alminhas, que exaltam e projectam no além sua
humana piedade. Em certos lugares, torna-se tão densa a estratificação das idades
e das culturas, como nesse encantador convento de Vilar de Frades, rodeado de citânias,
cuja igreja manuelina, dum sabor original, conserva seu primitivo portal
românico e prolonga-se no tempo com os belos retábulos de talha doirada de Seiscentos
e os azulejos tão pitorescos do século seguinte.
A gente do Minho é vigorosa e prolífica;
infatigável e tenaz no trabalho; esperta nos negócios; hábil por índole para as
artes plásticas e decorativas; e ama as manifestações exteriores de culto — as
procissões, os clamores e as romarias, onde vaza a sua alegria lúdrica com as danças
e os cantos dum lirismo inato.
Graças ao Minho, esse viveiro
inexaurível de homens, foi possível colonizar, desde o século X, o centro-suI e
o sul do país, dando ao moçárabe nova seiva, e alargar depois, além dos mares e
a todos os continentes, “a pequena Casa Lusitana”.
Graças ao Minho e ao seu povo, já antes
de haver concelhos, a organização localista e democrática das comunidades
agro-pastoris, dispensando forais, anunciava a vigorosa autonomia nos
municípios; já nos castros pré ou proto-históricos uma arte decorativa, que refloriu
mais tarde nos portais românicos, enfeitava as portadas e as estelas funerárias
dos castrejos; já as mulheres luziam jóias e arrecadas de oiro como lavradeiras de hoje,
dando assim ancianidade própria à estrutura íntima e às galas exteriores da
gente lusa.
Graças ao Minho e ao seu povo, fazendo
corpo com a Galiza — Alsácia portuguesa—, tivemos uma poesia lírica de
inspiração e encanto feminil e todo um dialecto plástico esculpiu nos capitéis
de granito das igrejas românicas um mundo maravilhoso de símbolos naturalistas
e poéticos; possuímos ontem e hoje uma arte de ourivesaria e filigrana; e as
oficinas locais de ensambladores espalharam, aquém e além dos mares, toda uma
corte celestial de imagens sacras ou os motivos regionais dos retábulos do
barroco nacional.
Graças ao Minho e ao seu povo, temos os
galos floridos de Barcelos que, no regresso dos turistas, dão a Portugal e a
todo o Mundo a esperança da madrugada; as rendas, os lenços e os bordados de
Viana; as cantarinhas das prendas de Guimarães,
plantadas como lavradeiras de mãos nas ancas; as finas rocas de fiar de Perre
ou de Lanheses, que lembram varinhas de condão; e esse espiritual traje
de noiva, poema de rendas e vidrilhos
de luar, traje de cerimónia ao divino, para a mulher se oferecer, em
graça, ao Anjo da Anunciação.
E quando soa o
nome de Minho, irresistivelmente o evocamos no colorido bulício duma romaria,
ao som duma tocata de viola braguesa, ferrinhos e réu-réu, bailando e batendo a
chula, a cana-verde e o malhão velho, ou volteando, braços no ar, com alado
donaire, no vira a quatro, roubado e “estrepassado”.
Jaime Cortesão
in O Estado de S. Paulo, 23 de
Outubro de 1955
Grupo de fundadores da Seara Nova, em 1921. De pé: Teixeira
de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis; sentados: Jaime Cortesão, Aquilino
Ribeiro e Raul Brandão. O padre que aparece à esquerda, de pé, não pertence ao
grupo dos seareiros. À altura, era pároco da freguesia de Coimbrão, Leiria,
onde a fotografia foi tirada. Sobre esta imagem e o “misterioso” padre que nela
aparece, recomendo a leitura do que escreveu Francisco de Seixas Costa, no seu
blogue Duas
ou três Coisas.
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