Da monomania da corrida e da higiene na prática desportiva

Lars Plougmann licensed under Creative Commons attribution (CC by) 2.0 license

Na tradição popular portuguesa, muito enraizada no Minho, o corredor é alguém que carrega consigo o peso de uma maldição que o atingiu no momento em que nasceu e sem que nada tenha feito para a merecer, a não ser nascer como sétimo (ou quinto) filho seguido do mesmo sexo e da mesma prol e a quem não fosse aplicado o “antídoto” prescrito pela sabedoria popular (no baptismo, dar ao recém-nascido o nome de Adão ou Eva, consoante os casos, e picá-lo com um alfinete num dedo, de modo a fazer correr uma gota de sangue). O corredor tinha que percorrer, todas as noites, um longo percurso, que passava por sete pontes, sete fontes, sete montes, sete encruzilhadas, sete portelos de cão e eu lembro-me dele sempre que passa por mim alguém a correr desalmadamente, como se também estivesse a correr um fado. É certo que há muitas diferenças entre o corredor de fado e o corredor da nova moda que por aí anda: o primeiro corria em solitário debaixo da pele de um bicho qualquer (lobo, cão, cavalo…) o outro vai de licras de cores garridas e fluorescentes e, muitas vezes, vai aos magotes. É uma nova moda, daquelas que, como costuma acontecer com as modas, incham, desincham e passam. Aos que a praticam não lhes chamam corredores, mas sim runners, que é nome mais adequado aos novos tempos.

Na minha juventude, tive muitos amigos que experimentaram as drogas da moda, que eram o “ácido” e certas substâncias que terminavam no sufixo -ina. Alguns ficaram agarrados a elas. Hoje diríamos que ficaram adictos. Por estes dias, quando vejo amigos, familiares, conhecidos e outros, em idades em que já deviam ter juízo, a experimentarem os desafios das corridas, para a seguir mergulharem na monomania da auto-superação das meias-maratonas, das maratonas e das ultramaratonas, desconfio que também eles caíram numa nova forma de adição. Começaram a dar nas endorfinas e no ácido láctico e viciaram-se. Qualquer dia começam a florescer por aí novas comunidades de entreajuda, os Runners Anónimos, e clínicas de desintoxicação que lhes irão prometer a sobriedade e a abstinência da pulsão corredora que, quando descontrolada, só pode acarretar malefícios para a saúde do corpo e do espírito.

Enquanto esse dia não chegar, o melhor é tomarem alguns cuidados básicos, nomeadamente com a nutrição, começando por desconfiar do poder mágico dos suplementos que se vendem aos baldes nas casas da especialidade.

Nas primeiras décadas do século XX, quando a actividade desportiva se começou a massificar, não faltavam vozes avisadas que alertavam para os perigos que poderiam advir da prática de certos desportos. E os especialistas começaram a ditar as regras de vida para o sucesso do desportista, que passavam pelo treino e, especialmente, pela alimentação, que deveria ser adequada ao esforço desenvolvido. Nos jornais, as então novíssimas secções dedicadas ao desporto iam dando conta do estado da arte, de que a coluna Off-side que um tal Virivalho assinou no jornal republicano A Razão foi pioneira na imprensa local de Guimarães. Foi lá que encontrei o texto que se segue, dedicado aos cuidados de higiene e alimentação dos futebolistas, com a prescrição de cardápios adequados aos diferentes jogadores, consoantes as posições que ocupavam no campo. Vale a pena ler, acreditem-me.


OFF-SIDE

A higiene no Foot-Ball

Vamos expor as regras já usadas com grande êxito em todos os países da Europa e da América. Para se praticar bem este desporto não bastam só os treinos e a ginástica. Cuide-se do corpo e da alimentação.

Avançados

Os avançados de um team devem alimentar-se muito bem. Terão 4 refeições diárias. O primeiro almoço às 7 horas da manhã, que constará de um alguidar de arroz de polvo (olhinhos polvoreiros) e uma travessa de salada de alface, sem molho. Ao meio-dia, almoço, que poderá constar, de preferência, de um ou dois leitões assados no forno, um coxão de cabrito estufado e 2 quilos de lombo de porco au gratin. Sobremesa: 2 ananases ou 2 dúzias de laranjas e 2 litros de vinho verde, bom. Às 4 horas, merenda, que constará de 2 ou 3 lagostas de mayonaise e meio peru recheado com farinha de pau e 4 garrafas de cerveja preta, alemã, para auxiliar a digestão. Finda esta pequena refeição deve-se repousar durante 3 horas seguidas para que a alimentação produza bons resultados.

Às 9 horas e meia da noite, jantar, que deverá constar de pratos de resistência como por exemplo uma bacalhoada com todos os matadores e mais 4 pratos diversos. Sobremesa: 1 queijo flamengo e castanhas assadas. Por cima disto tudo, 3 canecas grandes de vinho do Douro. Finda a refeição, passear durante 3 horas para fazer a digestão.

Pontas e meias pontas (direitas e esquerdas)

O regime alimentar destes jogadores é diverso do antecedente. Deverão comer só uma vez por dia, e pouco, para conservarem a indispensável agilidade e fortalecerem os músculos das pernas. Assim, logo que sejam 2 horas da tarde comerão um caldinho verde com alguns feijões fradinhos e... nada mais. Não é permitido o uso de pão de milho, de centeio ou de trigo. De resto, poderão comer qualquer outro. Por cima do caldo tomarão uma xícara de chá para desgastar.

Defesas e meias defesas

Estes jogadores deverão alimentar-se apenas com farinha de pau e chá de parreira, a fim de conservarem a robustez física devendo andar sempre com o ventre bem desimpedido para que a sua acção em campo seja mais eficaz. Deverão ter uma cabeça sólida a fim de executarem bem as cabeçadas. Terão 3 refeições diárias: a 1.ª às 6 horas da manhã, constando de 1 prato de farinha de pau; a 2.ª às 3 horas da tarde, com a mesma receita, e a 3.ª à meia noite, idem, idem.

Por cima de cada refeição poderão beber o vinho que lhes apeteça, cuja dose não poderá nunca ser inferior a 2 litros e meio por cada uma delas.

Guarda-redes

Para se ser um bom guarda-redes é indispensável ser dotado do maior sangue frio e da maior serenidade. Estas qualidades deverão andar aliadas a um bom físico, a um golpe de vista rápido, a saltar e mergulhar bem. Por isso, esta classe de desportistas deverá alimentar-se apenas com lacticínios e a purgar-se com óleo de rícino de 3 em 3 dias, a fim de trazer o ventre livre. E como a sua missão e executar defesas, sempre que tenha de entrar em desafios, e para que o esférico se lhe não escape das mãos, deverão estes jogadores ter as luvas sempre bem untadas com visco (200 gramas para cada luva) a fim de encaixarem com a maior segurança.

Todos os jogadores de foot-ball deverão tomar todas noites, ao deitar da cama, um banho de chuva, não só para lhes refrescar a cútis como também para os desencardir de sujidades que porventura tenham adquirido com o uso constante dos treinos.

Virivalho.

A Razão, Guimarães, 31 de Maio de 1925

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