Raul Brandão, com a farda do Regimento de Infantaria 20 |
Já passaram 120 anos sobre a data em que Raul Brandão, feito alferes — “profissão que, aliás,
absolutamente errara, por inadaptação à vida militar”, no dizer do coronel
Mário Cardoso — se apresentou no Regimento de Infantaria 20, que estava aquartelado no “casarão
negro e em osso” do Paço dos Duques Guimarães. Quem lesse a História de um Palhaço, que se publicou naquele mesmo ano de 1896, facilmente perceberia que aquele modo de
vida quadrava mal à personalidade do escritor. Era manifesto que se sentia deslocado em tal carreira, que se forçara a seguir “por vontade do pai, e para não desgostar a mãe” que, segundo Aquilino
Ribeiro, fazia gosto em ver “o seu menino fardado, taful, cintadinho em
correias de anta, pisgado pelas carochinhas das janelas”.
Nas suas Memórias, Raul Brandão pintaria a traços negros os seus
dias em que cursou a Escola do Exército e frequentou o estágio regulamentar na
Escola Prática de Infantaria de Mafra:
Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão
militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam
no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigos para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes.
Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno
deve ser uma
retrete de soldado em ponto maior...
No entanto, a realidade que encontrou no regimento de Guimarães
era bem diferente da que encontrara até nos quartéis por onde já passara:
Outra louça. Achei-me numa casa de campo sem
conforto nenhum, mas a parada da guarda era às onze – entrada – e tocava à ordem
à uma – saída. Meia dúzia de soldados no velho
casarão negro e em osso, e oficiais a jogar o gamão, numa sala, ali encantados desde o
princípio do Mundo. De quinze em quinze
dias uma inspecção: ficava-se no quartel, mas eu, como noivo, fechava
os soldados à chave, metia esta
no bolso e ia dormir a casa.
Das suas obrigações militares em terras vimaranenses, guardou memória de dois acontecimentos
anuais em que tinha que participar: a romaria de S. Torcato e a procissão de
S.Jorge, a que os vimaranenses baptizaram carinhosamente de procissão
do caga-ratos:
Estou a ver-me na Oliveira,
com o Flores a comandar uma companhia:
– Abrir fileiras! Apresentar
armas! – Era o simpático boneco que aparecia lá no fundo, em
cima do cavalo, de lança, elmo e plumas, seguido
por todas as alimárias que os fidalgos
de Guimarães mandavam naquele dia para o acompanhar. – Marche! – Uma rua mergulhada em sombra húmida. Um ziguezague muito azul lá no alto, entre os beirais. Chiada de ferreiros no céu e pelo chão punhados de funcho aromático, que exalavam mais cheiro calcados.
As meninas debruçavam-se sobre as colchas de seda. – Marche! –
A música a tocar e nós a rompermos, de espada
alta, sorrindo para as janelas atrás do bonifrate.
Em Guimarães, o alferes Brandão levou uma “vida de abade”, como confidenciaria
ao seu amigo Columbano Bordalo Pinheiro, numa carta de meados de 1898, em que
descreve a cidade que o acolheu:
Guimarães
é uma cidade perfeitamente Idade Média, com palácios, igrejas e casas minhotas
curiosíssimas. Tudo isto tem um aspecto de que você deve gostar muito. Os
arredores, a paisagem, até nos dias de chuva, são admiráveis. Lindas raparigas
e vinho verde magnífico a cinco mil réis a pipa; acrescentado isto, fica você
percebendo que esta terra basta para a minha felicidade. Estou, portanto,
contente. Não vejo à minha volta senão gente feliz, corada e palreira — e a
alegria é, como sabe, comunicativa. Aluguei uma casa fora da cidade com um
enorme quintal e um telheiro. De lá, nestas duas últimas tardes de calor,
amodorrado olho a Penha — uma montanha eriçada de penedia e as árvores que
separam os campos, cobertas de vinha. Trabalho da uma às quatro e meia. Depois
passeio, como e durmo. Uma vida de abade.
0 Comentários