Da muralha: função, simbolismo, identidade e projectos

O Centro Histórico de Guimarães, em cuja configuração é perfeitamente perceptível o efeito de contenção produzido pela cintura de muralhas. Imagem obtida a partir do Google Maps.
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A dimensão política que, por estes dias, tem contaminado o debate acerca da Torre da Alfândega e da Muralha de Guimarães não é mais do que espuma que perturba a compreensão da essência do que está em discussão. A cintura fortificada que, desde a Idade Média, antemurava a vila de Guimarães, tem uma importância central para a compreensão da evolução urbana da cidade. É que, da sua função natural de proteger a vila, com os seus muros alto e maciços, resultou também a sua condição de barreira ao crescimento do espaço urbano.
Ao longo de séculos, a antiga vila de Guimarães cresceu emparedada, dentro do espaço confinado pelos muros que a cercavam. Foi a muralha que lhe fixou o recorte e a planta que perduraram até aos nossos dias, apesar de já não existir, desde o século XIX, em mais de metade do seu circuito original. Não existe, mas permanece, persistente e indelével, no desenho do casco urbano da zona histórica de Guimarães. Tal permanência é visível a olho nu, quando se observa uma fotografia aérea actual, e demonstrada, com toda a evidência, se se sobrepuser a essa fotografia a mais antiga planta de Guimarães que conhecemos, que data de meados do século XVI.
A situação recentemente despoletada pela intervenção do vereador Torcato Ribeiro abriu uma janela de oportunidade para que, finalmente, se avance com um projecto consistente de compreensão e valorização da antiga cerca de Guimarães, integrando-a, no conhecimento e no imaginário colectivo, como um dos nossos elementos identitários mais marcantes. Parece claro que, se toda esta discussão tem uma dimensão histórica, cultural, simbólica e política, não deve ser inquinada por fracturas de natureza partidária. Esta é uma daquelas matérias em que qualquer cidadão de Guimarães, desde que na posse de toda a informação pertinente, chegará à mesma conclusão, independentemente de afinidades partidárias: esta é a oportunidade para recuperar a Torre da Alfândega para o domínio público e ninguém perdoará aos nossos decisores políticos se não convergirem numa solução que a materialize. Se assim não for, ganha força a percepção de que alguma coisa verdadeiramente relevante terá mudado nestes últimos anos na nossa governação local. E que não terá sido na melhor direcção.
A preocupação com a valorização da marulha e do seu contexto patrimonial, histórico e simbólico não é de hoje. Já muito se escreveu sobre o assunto. Como o blogue onde escrevo já tem “certa idade”, nele se encontra informação substancial sobre este assunto, nomeadamente sobre o que se tem dito ao longo da última década, de que ensaiarei uma breve reconstituição.
Começamos em 2007, quando, no quadro do aceso debate que se seguiu à apresentação pública do primeiro projecto de requalificação para o Toural e a Alameda, que não se concretizaria. Numa primeira reacção a esse projecto, publicada no dia 7 de Outubro daquele ano, apresentava-se aqui uma sugestão:
Algum tempo mais tarde, a 16 de Dezembro, num dos textos da série que intitulei “Do Toural: 5. História, simbolismo e identidade”, escrevi:
Como resultado da ampla e participada discussão pública sobre aquele, que tinha muitas virtudes mas também um obstáculo que se revelou fatal para a sua concretização, decorrente do programa inicial apresentado aos projectistas ela Câmara Municipal (a construção de um parque de estacionamento subterrâneo no Toural), a Câmara Municipal de Guimarães optaria por o deixar cair. No entanto, manteve a ideia de requalificar a sala de visitas de Guimarães, aproveitando a oportunidade de financiamento aberta no âmbito da preparação da Capital Europeia da Cultura. A encomenda de um novo projecto foi entregue à arquitecta Maria Manuel Oliveira, que coordenou uma equipa sediada no Centro de Estudos de Arquitectura, da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho, então criado. Do quese foi conhecendo, desde muito cedo, sobre o que se projectava, logo se percebeu a intenção programática de integração da muralha e da Torre da Alfândega na reinterpretação daquele vasto espaço urbano.
Em Março de 2010, na Memória Descritiva do seu projecto, Maria Manuel Oliveira descrevia a muralha como um “elemento identitário profundamente incorporado na memória colectiva vimaranense”, impondo-se o “repensar a sua leitura na urbanidade actual”. As ideias de intervenção, envolvendo elementos da antiga cerca de Guimarães, apresentadas eram, no essencial, as seguintes:
― A marcação do traçado da muralha através do desenho do passeio que a acompanha, dando continuidade ao que já existia na Avenida Alberto Sampaio.
― A vontade de criar condições para o atravessamento pedonal entre o espaço intramuros e a área voltada a nascente da Alameda de S. Dâmaso.
― A utilização e consequente acessibilidade a partir do espaço público da cobertura da Torre da Alfândega, integrada no “objectivo, mais vasto, de releitura da muralha”. Revelar
― A abertura ao público do adarve que acompanha a avenida Alberto Sampaio. Esta sugestão, que se localizava fora da área de intervenção do projecto, justificava-se porque “permitiria, numa situação única na cidade, ler um singular fragmento da área intra-muros e perceber a investida da cidade moderna na sua direcção”.
A intervenção proposta para a Torre da Alfândega envolvia o lote de terreno dontíguo à torre, do lado da rua do Anjo, vendido recentemente, sem que a Câmara tenha, até ao momento (que se saiba) exercido o direito de opção que lhe assiste, por, no seu entender, “por não ter qualquer relação com a Torre”. Ora, como bem se percebe, esse lote é muito importante para qualquer projecto de requalificação da Torre da Alfândega, seja qual for a sua natureza. Sobre este assunto, lê-se na Memória Descritiva de 2010:
Verifica-se que na rua do Anjo existe um lote apenas ocupado por uma fachada arruinada onde seria aparentemente simples localizar uma escada exterior que acedesse à cobertura da Torre (aliás, a intervenção serviria como pretexto para resolver o actual estrangulamento da rua e facilitar a leitura de algumas das suas fachadas, assim como tratar uma empena degradada incluída na qual se percebe uma série de merlões). Uma escada desta natureza poderia constituir um muito interessante objecto arquitectónico, enquanto peça contemporânea aliada a uma outra de confirmada importância histórica, num processo de recíproco reconhecimento e valorização.
Sobre este projecto, escrevia-se aqui, em 20 de Fevereiro de 2011, cerca de um ano depois da sua divulgação:
A maior parte das propostas de intervenção envolvendo a muralha e a Torre da Alfândega constantes na Memória Descritiva do respectivo projecto não sairiam do papel, por razões que nunca ficaram bem esclarecidas. Mas não ficariam esquecidas.
No início de Maio de 2011, publicava-se aqui um ensaio de reconstituição, “especulativo” e anotado, do Toural de Miguel Bastos, com base na planta de Guimarães de c. 1569. Que me lembre, foi mais ou menos por essa altura que Miguel Bastos se começou a afirmar como o mais activo e persistente dos entusiastas da muralha de Guimarães. Em 2012, a convite da Capital europeia da Cultura, seria “guia improvável” de uma visita pelas muralhas de Guimarães, que repetiria vezes sucessivas nos anos que se sucederam. Em Outubro desse ano, escreveu uma carta, dirigida a eleitos autárquicos de diferentes orientações políticas, onde expunha as suas preocupações acerca da muralha e da Torre da Alfândega, que não encontraria grande ressonância.
No início de 2014, quando se falava do primeiro Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Guimarães, numa conversa de amigos no Bar do Convívio, surgiu a ideia de promover uma candidatura que contemplasse as ideias lançadas por Maria Manuel Oliveira, que entretanto se tinham tornado numa causa de que Miguel Bastos era o porta-bandeira. Nessa roda de amigos estavam Jaime Marques, José Maia e Torcato Ribeiro, que decidiram lançar o desafio ao Miguel Bastos, por razões óbvias, e a mim, por razões que só eles sabem, ficando o José Maia a funcionar como elemento de ligação aos autores da ideia.
Aceite o desafio, reunimos os três, nos primeiros dias de Abril, à volta de uma mesa muito bem confeccionada. Aí ficaram decididos os termos e a estratégia da candidatura. Desde logo ficou decidido que a proposta da intervenção na Torre da Alfândega ficaria para uma segunda oportunidade, por o seu custo previsível não caber dentro do limite máximo imposto aos projectos ao OP2014 e por ter ser mais complexo e envolver proprietários que, á altura, não sabíamos claramente quem eram. Distribuídas as tarefas, ficou assente que o Miguel Bastos prepararia o projecto de candidatura e que o José Maia e eu trataríamos da parte processual, nomeadamente da recolha das autorizações dos proprietários. Ficou também decidido que, estando estabelecido no regulamento do concurso que os projectos seriam submetidos por cidadãos individuais, seria, por razões óbvias, subscrito pelo cidadão Miguel Bastos.
Submetido o projecto, outros cidadãos de boa vontade se envolveram na sua divulgação e na mobilização de possíveis votantes. Apesar de todo o esforço desenvolvido, o processo de votação para o OP2014 foi… o que se viu, e o projecto “À Volta da Muralha”, que se propunha abrir à fruição pública o adarve do pano de muralha que acompanha a avenida Alberto Sampaio pelo lado do nascente, não teria sucesso. Mas a ideia não cairia em saco roto, conforme na altura responsáveis autárquicos confidenciaram o um dos seus mentores, José Maia.
E eis que, sem anúncio prévio, agora se podem reunir novamente as condições para que este sonho se concretize. Será que, repetindo 2010-2011, vamos voltar a desperdiçar a oportunidade? Não acredito.

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