A muralha, a torre, o público e o privado

O linha da antiga muralha de Guimarães, na zona da Torre da Alfândega (da planta de c. 1569, sobreposta a fotografia de satélite actual do Google Maps)

O edifício que tem a Torre da Alfândega embebida e onde hoje está o café Milenário tem-se revelado um excelente caso de estudo para a compreensão da dinâmica de apropriação da antiga cerca de muralhas, no quadro do processo de crescimento urbano de Guimarães. Ao longo da rua Nova e da rua do Anjo, as novas edificações foram-se erguendo encostadas à cerca, primeiro do lado de dentro, depois do lado de fora, incorporando o velho muro como estrutura de suporte. Regra geral, a muralha conservou-se até à Torre da Alfândega. A partir daí, ao longo de todo o seu percurso pelo lado Nascente do Toural, foi demolida para a construção da linha regular e harmoniosa de edificações vulgarmente conhecida por frente pombalina. No troço imediatamente a seguir à torre, as construções de encosto à muralha iniciaram-se ainda em finais do século XVIII, pelo interior, e, no século XIX, com a muralha derrubada, do lado de fora, com a construção do edifício com a fachada decorada com azulejos azuis que todos conhecemos. A parte do edifício voltada para o Toural, que se levantou junto à face exterior da muralha, pertence hoje à Santa Casa da Misericórdia de Guimarães. O restante, que confronta com a antiga rua do Postigo de S. Paio, hoje Dr. Avelino Germano e com a rua de Anjo, começou por ser um conjunto de três casas que, no início do segundo quartel do século XX, foi agregado num único imóvel, com um único proprietário.

O amplo salão do café Milenário, inaugurado em 1953, paga renda a dois senhorios. A frente voltada ao Toural, com os números de polícia 45 a 52, assim como as portas voltadas para a rua Dr. Avelino Germano, números 2 e 4, pertencem à Misericórdia. O espaço correspondente aos números 6 e 8 já tem outro proprietário. A muralha passava por dentro do café, sensivelmente na linha do balcão que o arquitecto Eduardo Ribeiro desenhou. As duas portas a seguir, onde funcionou uma ourivesaria, pertencem ao mesmo imóvel. Dobrando a esquina, na direcção da rua do Anjo, encontrámos, em primeiro lugar, vestígios da porta n.º 39, que dava para a mesma casa da ourivesaria, e que está emparedada a granito. A seguir, duas portas de madeira, a n.º 37 e a n.º 35, que dão aceso a duas casas de habitação, aparentemente vazias. Finalmente, encontra-se uma porta metálica envidraçada, por onde se acede à sala de bilhares do Milenário e, pelas escadas que aparecem depois de se passar por uma porta que aparece à direita, ao espaço onde outrora funcionou o carismático bar Jesus. Subindo mais um lanço de escadas, acede-se a um terraço a céu aberto. Imediatamente se percebe que  se está no cimo do que resta da Torre da Alfândega, que também pode ser chamada de Torre das Biscaias. Por cima da porta metálica envidraçada por onde se entrou, está um número que tem dado muito que falar. É o misterioso n.º 33 que, afinal, não tem mistério nenhum.

Corresponde este n.º 33 à antiga inscrição na matriz predial n.º 6493 da freguesia de S. Paio, onde o imóvel aparece descrito como “um andar no vão da torre, casa, loja, que serve de celeiro e adega e um rossio”. Este rossio, que será um espaço como os que as nossas gentes designam por rexios, parece ser o espaço onde agora está uma ruína com uma placa onde se lê “vendido” (e que se refere uma transacção diferente daquela de que se tem falado nos últimos tempos).
Reconstituição aproximada da planta do edifício da Torre da Alfândega / Café Milenário. Os números 6, 8, 10 e 12, da rua Dr. Avelino Germano, e os números 33, 35, 37 e 39, da rua do Anjo, são um único imóvel.
(clicar sobre a imagem para ampliar) 

Neste momento, estamos em condições de confirmar que este imóvel foi agregado ao que tinha, na matriz de S. Paio, o n.º 6494 (correspondente às portas 35, 37 e 39 da rua do Anjo e 10 e 12 da rua Dr. Avelino Germano) e ao n.º 29769, da mesma matriz, de S. Paio, correspondente aos números de polícia 6 e 8 da rua de S. Paio.

A indicação de que estes três prédios constituem um único aparece numa nota de 1925, onde se lê que aqueles prédios “fazem hoje um só prédio do qual fazia e faz parte a muralha da cidade”, aparentemente aquando da avaliação a que terá sido sujeito por ocasião da sua compra pelo Dr. Fernando Gilberto Pereira ao Padre Francisco Peixoto de Lima.

Aqui cumpre completar a informação acerca dos proprietários do edifício onde está a Torre da Alfândega. Em 1936, o prédio foi vendido ao negociante Manuel Fernandes Braga, que o manteria até 1960, ano em que foi adquirido por Joaquim Fernandes Marques, em hasta pública decorrente de declaração de insolvência do anterior proprietário.

Recorte do anúncio da hasta pública de 2 de Abril de 1960

Nas suas três últimas transacções (1936, 1960 e 2014), este imóvel, que vai do n.º 6 da rua Dr. Avelino Germano ao número 33 da rua do Anjo, aparece referenciado com um único número de registo matricial. Em 1960 era 332, como se percebe da leitura do anúncio da hasta pública em que foi vendido no dia 2 de Abril de 1960, em que aparece como  descrita como uma morada de casas,

situada na Rua do Anjo, freguesia de S. Paio, desta cidade, com o número de polícia 33. Este prédio, conjuntamente com os prédios números 6.494 e 29.769, formam hoje um só prédio, que se compõe de uma morada de casas de três andares em parte e, em parte, de um só andar, com os números 6, 8, 10 e 12 de polícia, e também faz frente para a Rua do Anjo, para onde tem os números 33, 35, 37 e 39 de polícia, e do qual fazia e faz parte a antiga muralha da cidade. Este prédio era, antigamente, constituído por três moradas de casas, que formam hoje um só prédio. Está descrito na conservatória do registo predial no Livro B-23, a fls, 88. sob o n.º 6.493, e inscrito na matriz urbana sob o art.º 332.

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E assim se confirma que o vereador Torcato Ribeiro estava, por inteiro, dentro da razão quando, em reunião da vereação, lançou um alerta sobre a venda deste prédio onde se inclui a última torre do sistema fortificado que defendia Guimarães desde os tempos da Idade Média. Ainda demorarão muito tempo a reconhecer-lha?

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