A quem pertence o Terreiro das Carvalhas?


O Terreiro das Carvalhas, sem as carvalhas, no início do século XX.
O problema é recorrente: quando olhamos para a nossa Idade Média, quase sempre há um manto espesso e persistente que encobre o nosso olhar. São mais as dúvidas do que as certezas, porque nos faltam documentos que nos permitam dissipá-las. Assim acontece com os primeiros fundamentos do convento de S. Francisco de Guimarães. Diz a tradição, veiculada no princípio do século XVII pelo padre Torcato Peixoto de Azevedo, que este mosteiro teve duas fundações. A primeira teria acontecido no sítio de Vila Verde, em Urgezes, no “lugar a que agora chamam Fonte Santa”. A segunda fundação terá ocorrido na primeira metade do século XIII, dentro dos muros da vila, “pegado à Torre Velha em um hospital chamado do Anjo, situado na rua deste nome”. Mas ainda não seria aí a sua instalação definitiva. Quando, no final de trezentos, D. Dinis tratou de melhorar o sistema defensivo de Guimarães, ordenou que os mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco, por estarem encostados à muralha, fossem demolidos e novamente erigidos em lugares onde não fizessem perigar a segurança do burgo, em caso de cerco. S. Francisco seria então transferido para o seu espaço definitivo, junto ao quarteirão de Couros. O edifício que ali hoje podemos ver quase não guarda memória da construção original, sendo o resultado de sucessivas reconstruções, ampliações e restauros. Os seus traços mais marcantes, de filiação gótica, datam do início do século XV. Do lado norte do convento, estende-se um espaço que lhe servia de adro, que tomou o nome das árvores que lhe davam sombra: o Terreiro das Carvalhas.

Terminada a Guerra Civil, com a vitória dos liberais sobre os absolutistas, foram extintas as ordens religiosas. O decreto de extinção, redigido por António Augusto de Aguiar e promulgado por D. Pedro IV em 29 de Maio de 1834, dissolveu todas as ordens religiosas e secularizou os seus bens, com excepção das alfaias e paramentos destinados ao culto, entregando-os à Fazenda Nacional. O processo de extinção adoptou procedimentos diferentes para os conventos masculinos e femininos. Enquanto os frades tiveram que abandonar imediatamente os conventos, às freiras foi permitido que continuarem a habitar nos seus recolhimentos, proibindo-se o ingresso de noviças, sendo o património das suas ordens entregue ao Estado após a morte da última freira.

Em 30 de Maio de 1834, a comissão administrativa dos conventos abandonados da vila e termo de Guimarães, entretanto criada, procedeu ao inventário dos bens pertencentes ao extinto convento de S. Francisco de Guimarães. Era formada por Francisco José Pereira dos Guimarães, presidente, João Ferreira de Eça e Leiva, secretário, e pelo padre guardião Frei Jerónimo de Santa Teresa de Jesus Braga, que para o efeito fora mandatado pela respectiva comunidade. No primeiro dia Julho daquele ano, a Fazenda Nacional tomaria posse do convento, da respectiva cerca e de todo restante património do antigo convento de S. Francisco.

Nos anos que se seguiriam, as instalações do antigo convento de S. Francisco teriam diferentes usos: foi casa de sessões da Sociedade Patriótica Vimaranense, tribunal e casa de audiências, aula de aritmética e geometria aplicadas à indústria, secretaria da administração do concelho, recebedoria do concelho, hospital militar, quartel do Regimento de Infantaria n.º 3, teatro, palco de circo de cavalinhos…

Em Maio de 1850, o Ministro da Fazenda, Marquês de Ávila e Bolama, apresentou na Câmara dos Deputados um projecto para entregar o convento à Venerável Ordem Terceira de S. Francisco (VOTSF), para ampliação do respectivo hospital e construção de um cemitério. O projecto seria aprovado. Porém, tendo-se-lhe oposto a Câmara de Guimarães, não seria convertido em lei. Em 1874 aquela pretensão seria retomada, quando o deputado do círculo de Guimarães, João Vasco Ferreira Leão, apresentou à Câmara dos Deputados um projecto de concessão à Ordem Terceira do edifício do extinto convento de S. Francisco com terreno, jardins, claustro, dormitórios e enfermaria. A Câmara de Guimarães voltaria a opor-se, desta vez sem resultado. No dia 22 de Julho de 1875, um ofício da Direcção Geral dos Próprios Nacional ordenava a entrega à VOTSF das instalações do Convento de S. Francisco que pertenciam ao património do Estado desde 1834.

Em tempos recentes, ao que me dizem, tem havido alguma controvérsia sobre a propriedade do Terreiro das Carvalhas. Haverá quem tenha certezas e quem tenha dúvidas. Mas não me parece que quem tem certezas esteja certo. A questão é de resposta simples, à luz dos documentos que, neste caso, são como o algodão do anúncio. Não enganam.

O inventário dos bens do convento de S. Francisco de que o Estado tomou posse em 1834 é inequívoco, no capítulo em que se procede à descrição do casco deste convento e cerca, ao indicar as confrontações da cerca (área circundante do convento):

A Cerca deste Convento que o abraça de lado a lado, cerca de paredes, que confronta a norte com a fachada do mesmo convento, pelo sul com o rio de Couros, pelo nascente com a viela de Soalhães, pelo poente com os pelames da rua de Couros, tem algumas árvores de fruta e laranjeiras.

Ou seja: a sul e a poente, o limite são os pelames da rua de Couros; a nascente, a viela de Soalhães (que levava até ao Campo da Feira, perto da igreja dos Santos Passo); a norte, “a fachada do mesmo convento”. E, se a norte o limite são as paredes do convento, não pode haver dúvidas: o Terreiro das Carvalhas ficava fora da cerca, que é o mesmo que dizer que não integrava os bens que o Estado incorporou no seu património em 1834, mais tarde concedidos à Ordem Terceira.

É certo que no mesmo inventário, no capítulo Descrição do Cartório, onde se arrolam os documentos de S. Francisco, há um item referente a dois pergaminhos cosidos um ao outro, por onde consta que desde o Mosteiro até ao caminho que vai ao longo do muro que compreende os terrenos das Carvalhas é todo deste Convento, datados de 1363. Não me posso pronunciar sobre a veracidade desses documentos, que não conheço, embora presuma que tenham sido produzidos no contexto dos embargos que a Colegiada levantou à instalação do convento de S. Francisco no local onde hoje se encontra, alegando que esses terrenos lhe pertenciam. Noto que, em 1391, D. João I teve que se pronunciar sobre queixas do Cabido contra os frades do Convento de S. Francisco, na tentativa, frustrada, de impedir que estes estendessem o adro e o rossio do seu convento por uma vinha que lhe pertenceria.

Situando-se o adro e o rossio de S. Francisco no Terreiro das Carvalhas, não é líquido que esse espaço integrasse o património da Ordem de S. Francisco em 1363. No entanto, não temos dificuldade em aceitar que, algum dia, o terreiro pode ter pertencido ao convento. Mas não nos restam dúvidas de que não integrava o conjunto dos bens de que o Estado tomou posse em 1834 e que, passados quarenta anos, transitaram para a Ordem Terceira. O Estado não podia dar o que não lhe pertencia.

O Terreiro das Carvalhas pertence, há muito, ao domínio público municipal. Naquele lugar, a Câmara sempre pôs e dispôs.

Aquele foi espaço assentamento de mercado: em 1844, foram para lá as regateiras de fruta e aves e as padeiras, em 1857, os oleiros com a louça da terra, em 1859 os vendedores de toda a louça, vidrada e por vidrar, mais tarde funcionou ali a feira do pão, que se mudaria em 1912 para o largo da Misericórdia - sempre por decisão da Câmara. Assim como foi a Câmara que, em 1880, mandou derrubar os velhos carvalhos que tinham dado o nome ao largo (na altura, apenas sobrou um, mas por pouco tempo) e que, em 1893, tomou decisão remover o cruzeiro para lugar que fosse indicado pelo Ordem Terceira (o que só aconteceria em 1900, quando o cruzeiro foi desmontado e reerguido junto da parede da igreja voltada a Norte).
Traçado (a ponteado) da proposta de Almeida Ribeiro para uma rua que ligava o Terreiro das Carvalhas ao Campo da Feira.
(Tocar na imagem para ampliar. Documento do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta)
Também fora por decisão da Câmara que, em 1846, se tinha mandado abrir um caminho mais desafogado entre o Terreiro das Carvalhas e o Campo da Feira, pela Viela de Soalhães. E quando, em Outubro 1863, o Eng. Almeida Ribeiro, professor de Arquitectura e de Engenharia Naval das Belas-Artes do Porto, foi contratado pela Câmara para levantar a planta da cidade e delinear projectos de melhoramentos, não teve nenhum condicionamento em relação ao Terreiro das Carvalhas. Na proposta que apresentou, estão traçadas duas novas ruas que implicavam uma intervenção profunda no terreiro, uma que dali partia em direcção à Senhora da Guia, outra que estabelecia ligação directa ao Campo da Feira, então inexistente.

O projecto da rua para o Campo da Feira seria retomado várias vezes até ao final do século XIX. A sua concretização implicava a utilização de 144 metros de terreno do terreno de S. Francisco. Em 29 de Outubro de 1890, a mesa da VOTSF deliberou que, por lhe constar que “a Câmara pensa abrir uma rua que partindo das carvalhas ponha em fácil e formosa comunicação a Praça de D. Afonso Henriques com o Campo da Feira, e desejando contribuir para este melhoramento, oferece gratuitamente à Câmara, na ocasião presente, o terreno necessário para o alargamento da referida rua”. Pela leitura dos jornais do princípio de Novembro, percebe-se que o desmantelamento da parte do Convento de S. Francisco por onde passaria a nova rua se iniciou logo em seguida.

No entanto, o processo iria arrastar-se. Na sessão da Câmara de 19 de Outubro de 1891, foram aprovados, por proposta do vereador Eduardo de Almeida (pai), o projecto e o orçamento para a abertura da rua que atravessaria o Terreiro das Carvalhas, fazendo a ligação entre o Campo de D. Afonso Henriques e o Campo da Feira, elaborados pelo Condutor de Obras Públicas António Martins Ferreira. A Câmara ficou autorizada tratar das expropriações de terrenos e a dar início às obras. Na sequência desta deliberação, O Comércio de Guimarães de 21 de Dezembro de 1891 noticia que a Câmara resolveu pagar à VOTSF cem mil réis pelo “terreno do edifício da extinto convento de S. Francisco, que a mesma ordem foi obrigada a deixar ao uso público, em consequência do alinhamento que lhe foi marcado pela Câmara, conforme o projecto da nova rua entre a praça de D. Afonso Henriques e o Campo da Feira”. Em sessão de 14 Fevereiro de 1900, a Câmara ainda aprovaria um orçamento no valor dezoito contos e quinhentos para a abrir a rua.

A obra nunca se faria, mas este processo ajuda-nos a perceber claramente que o Terreiro das Carvalhas pertence ao domínio público, que, aliás, naquela altura foi acrescentado com 144 metros retirados ao Convento e pagos pelo erário municipal.

Aliás, foi por aquele espaço pertencer ao domínio público municipal que a Câmara ali foi fazendo intervenções ao longo do tempo, com destaque para a requalificação profunda de 2011, em grande parte paga com fundos europeus que jamais poderiam ser mobilizados para obra promovida em propriedade alheia. Um projecto que teve como objectivo desafogar o terreiro, valorizando a percepção do conjunto monumental de S. Francisco. Propósito que tem sido colocado em crise, com a insistência em fazer regressar o Terreiro das Carvalhas à sua condição anterior de parque de estacionamento. Até quando?

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3 Comentários

Rafael Moura disse…
Muito bom artigo! E informações semelhantes da Casa do Proposto, haverá? :)
Obrigado. Algumas haverá. Sobre o Campo do Proposto, não faltam (tem sido um dos assuntos que tenho trabalhado recentemente, mas os resultados tardarão ainda algum tempo).
King_vsc disse…
Tenho seguido há alguns anos, com imenso interesse "Memórias de Araduca" e os artigos aí publicados. Reconheço que não é fácil, nestas coisas com história, a recolha de tudo quanto possa ser verdadeiramente relevante e comprovado.
Dou-lhe os meus parabéns, Sr. António Amaro das Neves pelos excelentes trabalhos de pesquisa e recolha dos factos que dizem respeito a Guimarães e às suas gentes (meus conterrâneos).
Um bem-haja pelos conhecimentos que me tem transmitido.
Parabéns pelo excelente trabalho, fico à espera de outros igualmente interessantes.