Salvador Ribeiro de Sousa, o "Massinga", Rei do Pegu. |
Andando mais no modo de ler e
escrever do que no de publicar e partilhar (mais tarde mostrarei o que tenho
andado a fazer), um dia destes fui forçado a um breve interregno, por causa de
um desafio improvável. A coisa conta-se assim: recentemente, o Miguel Salazar pediu-me
que lhe indicasse mais nomes de vimaranenses para a sua notável série de ilustres vimaranenses. Respondi-lhe com um
rol de nomes que me pareciam óbvios, a que acrescentei dois menos óbvios, por
serem personagens de quem desconhecemos qualquer retrato. Um deles era Salvador
Ribeiro de Sousa. O Miguel entusiasmou-se e deu-me o troco: faria a "vera efígie" do Rei do Pegu e eu escreveria o texto sobre o cavaleiro da fortuna de Ronfe
que andou pelo Oriente e foi feito rei na Birmânia. Do desafio com efeito
bumerangue surgiu o que agora aqui deixo, com publicação inicial na revista
Mais Guimarães. A caricatura que Miguel Salazar traçou decorre de uma
interpretação rigorosa do retrato de Salvador Ribeiro de Sousa escrito por quem
o terá conhecido bem, o padre Manuel de
Abreu Mouzinho. Sobre esse trabalho, escreveu o autor:
A caricatura de Salvador Ribeiro de Sousa é obviamente uma criação
livre, uma vez que não existe qualquer registo das suas verdadeiras
feições.
No entanto, a sua
caracterização respeita escrupulosamente a descrição feita pelo Padre
Manuel de Abreu Mouzinho.
No pouco espaço livre que
restou para a minha imaginação, procurei simbolizar o enquadramento
histórico da figura deste herói vimaranense.
A coloração das plumas
do seu morrião e o brocado da casaca e dos calções, simbolizam as cores de
Leão e Castela, a quem nessa altura estávamos subjugados.
Mas é no interior da sua casaca
que reside a verdadeira essência do povo português: enquanto a face
exterior representa o domínio estrangeiro, a interior pretende simbolizar
a indomabilidade do nosso Povo, através do brasão da Realeza portuguesa,
bordado a vermelho, como é característico dos bordados de Guimarães.
Ao pescoço, a Comenda da Ordem de
Cristo que mais tarde viria a receber.
E no seu braço esquerdo, um
“escudo fino” com a mesma decoração do escudo do Guimarães das “duas
caras”, escultura que encima a antiga Casa da Câmara e que domina a Praça
da Oliveira.
Neste baixo-relevo está assim
representada mais uma vez a nossa ânsia pela restauração da independência,
em que as raízes de uma oliveira (outro símbolo vimaranense) dominam e
derrotam o leão espanhol.
O texto que escrevi, é o que vai aí
abaixo.
O outro rei de Guimarães
A história extraordinária do vimaranense
Salvador Ribeiro de Sousa
Hoje quase esquecido, Salvador Ribeiro de
Sousa é uma das figuras mais extraordinárias da epopeia dos portugueses na
Ásia. Nasceu em Guimarães e foi rei na Birmânia. Para a história ficou
conhecido como Massinga, o rei do Pegu.
Quase tudo o que sabemos sobre Salvador
Ribeiro de Sousa é o que nos conta o padre Manuel de Abreu Mouzinho: veio ao
mundo no lugar de Quintães, do antigo Couto de Ronfe, no termo de Guimarães.
Era filho de Frutuoso Gonçalves de Sousa, sendo “de limpo e nobre sangue”.
Provavelmente por não ser o primogénito, seguiu o destino de muitos filhos
segundos da nobreza do seu tempo: em Março de 1587 fez-se ao mar e partiu para
Índia, em busca de riqueza e glória. Com ele embarcaram dois dos seus irmãos,
que nas paragens do Índico em vez da fortuna que procuravam, encontraram a
sepultura. Como tantos outros, morreram “gloriosamente em serviço de Deus e de El-Rei”.
Ao longo dos treze anos que se seguiram à sua
partida de Lisboa, Salvador levou uma vida aventurosa, envolvendo-se em
expedições militares em que se destacou pela bravura de soldado e pela
prudência de capitão. No Ceilão chegou a capitão duma companhia. Aí permaneceu
seis anos, até ao dia em que decidiu que era tempo de regressar a Portugal,
para demandar do rei a retribuição que lhe era devida pelos seus serviços e
pelos dos seus desafortunados irmãos. A viagem para Goa, onde iria embarcar
para Lisboa, foi interrompida pelo mau tempo, que forçou o barco em que seguia
a fundear no porto de Sirião, na foz do rio Pegu. Corria o mês de Junho de 1600
e a terra a que aportava vivia tempos conturbados. Havia poucos dias que, após
longos anos de guerras sangrentas, o cruel rei do Pegu se rendera ao seu
vizinho de Tangut, ficando o seu reino exposto à cobiça dos príncipes reinantes
nas terras vizinhas, entre os quais se destacava o rei de Arracão, que por
esses dias estava em Sirião, à frente de uma armada composta por uma centena de
baixéis.
Foi em Sirião que Salvador Ribeiro conheceu
Filipe de Brito de Nicote, mercador de Lisboa que há duas décadas tentava a
fortuna na Ásia, e que então andava no séquito do rei de Arracão, exercendo o
ofício de changá (vedor da fazenda). Discorrendo ambos sobre “o miserável
estado a que estava reduzida esta monarquia tão opulenta”, e percebendo
Salvador que seria vantajoso para a presença portuguesa na Ásia o
estabelecimento duma feitoria naquelas paragens, obteve licença do rei de
Arracão para edificar uma casa de mercador em Sirião. Todavia, em vez de uma
casa, Salvador começou a erguer secretamente uma fortaleza.
O rei de Arracão não demorou a perceber que
Salvador Ribeiro não era mercador, mas sim capitão de guerra, e que o que
estava a ser construído não era a casa de comércio que tinha autorizado. Logo
se arrependeu do consentimento que dera de boa fé, decidindo livrar-se da
ameaça que via erguer-se em terras do reino que acabava de fazer seu. Juntou
uma numerosa armada, que fez descer o rio, convencido de que lhe seria fácil
desbaratar os portugueses. Porém, Salvador Ribeiro, tendo notícia do que se
preparava, saiu ao encontro dos atacantes, subindo o rio com “três batéis
velhos de umas naus de mercadores, que ali tinham ficado, e com trinta soldados
portugueses que tinha, providos de escopetas, alcanzias de pólvora e lanças de
fogo (porque não tinha artilharia)”. Ao maior número e à maior força do
inimigo, respondeu o capitão vimaranense com as vantagens da surpresa e da
ciência militar, atacando onde não era esperado. Assim que chegou à vista da
armada do rei de Arracão, “investiu com tal braveza e esforço, que por mais que
os inimigos se procuraram defender, como foram apanhados de repente, e as balas
e alcanzias começaram a chover com morte de muitos dos inimigos, obrigou-os a
porem-se em infame fugida, lançando-se uns à água, outros saltando em terra, e
os que se achavam mais apartados, pondo a esperança de sua salvação na força
dos remos, tornaram com diferente velocidade por onde tinham vindo”.
Corriam os primeiros dias do ano de 1601
quando o nome de Salvador Ribeiro de Sousa começou a ser pronunciado com
respeito e temor pelos príncipes das terras vizinhas. Porém, não tardaria até
que os portugueses de Sirião voltassem a estar sob o fogo inimigo. O banhá
(título atribuído no Pegu à principal autoridade, a seguir ao rei) Lao assentou
arraial junto à fortaleza, à frente de um exército composto por mais de seis
mil homens, com o propósito de a destruir e de eliminar os que a defendiam.
Porém, o perigo aguçava a argúcia e o destemor de Salvador Ribeiro. No silêncio
da noite, investiu no acampamento dos sitiantes, “entrando com grande silêncio
pelas barracas, achando os inimigos sepultados no sono e descuidados, não parou
até chegar à do banhá Lao, ao qual, conhecendo-o pelo aparato e insígnias,
levou nos braços com tanta força e esforço, que em pouco espaço o privou da
vida”. Os portugueses chegaram fogo às tendas dos sitiantes que, tomados pela
confusão e pelo pânico, dispersaram na maior desordem.
Mas as provações de Salvador Ribeiro de Sousa
ainda estavam longe de terminadas. Logo em seguida, foi atacado pelo muito
poderoso banhá Dalá, que jurara vingar a morte do banhá Lao, de quem era sogro.
Durante mais de meio ano, a fortaleza portuguesa de Sirião ficou sob cerco,
sujeita a terríveis assaltos. Por todo aquele tempo, Salvador Ribeiro enfrentou
as maiores adversidades, os combates desiguais, a fome, o desânimo e a
insubordinação e deserção dos seus soldados, de que apenas sobrariam dezoito
para enfrentar um formidável exército. A tudo resistiu, até ao dia em que, com
o socorro de algumas naus de mercadores que aportaram em Sirião, conseguiu
romper o cerco inimigo. Daqueles dias lhe ficou uma cicatriz de uma ferida que lhe
rasgou a face desde a orelha esquerda até à boca. Bem maiores foram as perdas
infligidas ao inimigo.
Entretanto, correndo a notícia de que o rei
do Pegu tinha sido morto às mãos do seu cunhado, o rei de Tangut, os banhás e
xemins (capitães) daquelas terras, reconhecendo que o sentido de justiça e a
rectidão de Salvador Ribeiro de Sousa igualavam a bravura com que alcançara as
suas assombrosas vitórias, decidiram proclamá-lo rei. Com a aprovação do rei de
Tangut, o português foi aclamado rei Massinga do Pegu, entregando-lhe a lâmina
de ouro que simbolizava o poder real. Assim se cumpria uma antiga profecia, há
muitos anos inscrita pelos sacerdotes nos livros sagrados, segundo a qual o
senhorio daquele reino, depois de muitas provações, seria entregue a “homens
estrangeiros de rostos e dentes alvos, e cabelo cortado”. E foi assim que
Salvador Ribeiro de Sousa, vimaranense de Ronfe, se fez rei na Birmânia e foi
adorado quase como uma divindade pelos seus súbditos, que lhe chamavam Quiay
Massinga, que significa “deus da terra”.
Mas, se os naturais reconheceram o mérito de
Salvador Ribeiro nas vitórias e nos sucessos dos portugueses naquelas paragens
da Ásia, o mesmo não fizeram os seus. Enquanto Salvador Ribeiro trazia, a duras
penas, o reino do Pegu para os domínios portugueses, Filipe de Brito e Nicote
insinuara-se junto vice-rei da Índia portuguesa, Aires de Saldanha, de quem
recebeu honras de capitão e uma sobrinha para desposar, para além de carta de
patente de Capitão-mor e Conquistador de Pegu, para cuja conquista em nada
contribuíra.
À ingratidão, Salvador Ribeiro de Sousa
responderia, contra a vontade dos seus soldados e dos peguanos, com “um dos
mais subidos toques de lealdade e grandeza de ânimo, que tem sucedido em muitos
séculos”, afirmando-se vassalo do rei de Portugal, pelo que “com ânimo
sossegado e obediente entregava a quem seu vice-rei lhe mandava, ainda que
contra razão, e justiça”, sujeitando-se a “honrar com o sangue, que ele
derramara, a Filipe de Brito, que seguro, e regulado, estava dali mais de
duzentas léguas sem entrar em Pegu todo o tempo da guerra, e agora que estava
um paz, vir gozar do proveito, e honra alheia”.
Entregue o reino do Pegu a Nicote, Salvador
Ribeiro decidiu que era tempo de terminar a viagem que iniciara três anos, e
que a inclemência do tempo interrompera, fazendo-o aportar em Sirião. Mas o
vimaranense ainda teria novo ensejo para demonstrar a sua lealdade à coroa
portuguesa e aos que o um dia o aclamaram rei. Enquanto aguardava a partida
para a Índia, recebeu a notícia de que um tal Banca Capitão reunira grande
número de homens e se entrincheirara na cidade de Pegu, impedindo que as
mercadorias chegassem a Sirião. Vendo que Filipe de Brito nada fazia, “quis
Salvador Ribeiro compor aquele motim e apagar aquelas faíscas”, embarcando com
uma força de duzentos portugueses e alguns ximins, ao encontro dos amotinados.
E, “como aquela gente era de pouca importância, e seu Capitão com os demais
trazia sempre representado na memória o nome de Massinga Rei, foi tal o temor,
que entrou neles, que com facilidade desamparam a Cidade, não a tão pouca custa
sua, que os nossos deixassem de levar alguns navios carregados de cabeças de
inimigos em sinal do que tinham trabalhado”.
Por uma última vez, “entrou como costumava
Salvador Ribeiro vitorioso na fortaleza”.
Algum tempo depois, em Março de 1603,
Salvador Ribeiro partiu rumo a Portugal, “deixando aquele Reino, em que Deus o
levantara ao alto da humana felicidade, regado com seu sangue, possuído de
outro, com ânimo mais generoso do que se pode encarecer, em Março de mil e
seiscentos e três anos deu as velas ao vento de largas esperanças, que de
ordinário se desfazem naquilo de que se sustentam”.
Do mais da vida deste herói vimaranense pouco
sabemos de certo, a não ser que, no ano de 1608, foi inscrito no Livro de
Matrícula dos Cavaleiros da Ordem de Cristo. Alguns autores dizem que se
recolheu à terra que o viu nascer, onde teria terminado os seus dias mergulhado
na mais triste pobreza. No entanto, é muito provável que tenha vivido os seus
últimos anos em Alenquer, numa situação económica que andaria longe da pobreza.
Terá contribuído com um avultado donativo para o restauro do oratório do
pequeno convento de franciscano de Santa Catarina daquela vila, em cuja capela
seriam depositados os seus restos mortais. Numa das paredes das ruínas da Casa
do Capítulo daquele recolhimento, ainda subsiste uma lápide onde se lê:
Salvador
Ribeiro de Sousa,
Comendador de Cristo, natural de Guimarães,
a que os naturais do reino de Pegu elegeram por seu rei.
Comendador de Cristo, natural de Guimarães,
a que os naturais do reino de Pegu elegeram por seu rei.
Quanto a Nicote, que tinha tanto de ambição
como Salvador Ribeiro acumulava de bravura e de desprendimento acabaria os seus
dias em 1613, pendurado na forca de Sirião. E, suprema ironia, a sua cabeça lá
ficou, espetada num pau num dos adarves da fortaleza que Salvador Ribeiro de
Sousa erguera e que ele não soubera conservar.
Nota: os fragmentos deste texto colocados
entre aspas são citações do ““Breve discurso em que se conta a conquista do
reino de Pegu”, de Manuel de Abreu Mouzinho.
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