A entrega das maçãs (desenho de Gil Azevedo, 1943) |
Como se recordarão aqueles que têm tido paciência para ler o que aqui
tenho publicado, já afirmei que as causas da decadência das celebrações do dia de S.
Nicolau não devem ser imputadas nem ao local onde acontece a entrega das maçãs,
nem à adesão dos estudantes a esse número, mas sim à falta das folias que, outrora,
traziam colorido e animação às ruas de Guimarães. Agora vou tentar explicar porquê, começando por
recordar o que se sabe da “biografia” daquele que, outrora, era o dia principal
das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau. A Colegiada de Guimarães
era proprietária da dízima (tributo correspondente à décima parte dos
rendimentos) e da são-joaneira (foro que se cobrava pelo S. João) de Urgezes,
cuja colecta andava arrendada a paticulares por períodos de três anos.
Conhecem-se contratos de arrendamento destes foros desde a segunda metade do
século XVII e sabe-se que, desde tempos
imemoriais, o arrendamento era feito com a obrigação do rendeiro satisfazer
aos estudantes do senhor S. Nicolau pelo seu dia a porção que é
obrigado com toda a boa satisfação como é uso e costume e sempre foi, conforme se lê no
contrato de 1734. O contrato de 1808 especifica o conteúdo da porção da renda dos dízimos de Urgezes
que era devida aos estudantes, e que também conhecida por foro, pensão ou posse:
dois alqueires de
castanhas assadas, meio alqueire de nozes, meio alqueire de tremoços, duzentas
maçãs, dois almudes de vinho e duas dúzias de palha de argola.
Não se sabe ao certo qual a origem deste costume, indicando-se que
teria resultado do legado de um cónego, nunca identificado. Também não se sabe
quando começou, mas teve início, seguramente, bem antes a primeira referência
datada que lhe conhecemos (contrato de 1734, onde se diz que existe desde sempre). Os documentos deixam algumas
dúvidas na identificação de quem teria direito àquela pensão. Umas vezes
afirma-se que pertencia aos estudantes, outras que era devida aos coreiros ou
meninos do coro da Colegiada da Oliveira. Dos documentos, percebe-se que seria
devida, solidariamente, aos coreiros e aos estudantes.
Albano Belino deixou, num manuscrito que pertence à Sociedade Martins
Sarmento, uma descrição deste velho costume, que nos remete para as celebrações
parodiais do dia de S. Nicolau que conhecemos noutras partes da Europa:
Antigamente a renda
não se partia em Urgezes sem que chegassem os três coreiros a cavalo, trajando
o primeiro (o bispo) que era o mais velho, batina, murça e meia preta; e os
dois restantes (os cardeais), batina, Murça e meia vermelha. Faziam a entrada
na cidade e levavam as castanhas assadas aos cónegos e às pessoas mais gradas.
No dia de S. Nicolau de 1883, o jornal O Espectador, de Guimarães, publicava uma descrição das velhas
festas dos estudantes a S. Nicolau, em que se refere a renda de Urgezes e o
destino que lhe era dado:
Os coreiros, indo ali
todos os anos, no dia de S. Nicolau, receber a renda, vinham depois a cavalo e em hábitos
corais, oferecer da mesma às pessoas mais
gradas da terra. Esta usança, depois de renhidos demandas e peripécias várias,
passou para os estudantes de latim em Guimarães, que deram ao caso as
aparências de uma grande festa.
Recebida a renda, os
estudantes seguiam em cortejo desde Urgezes, entravam na cidade,
“apresentavam-se” ao pinheiro, erguido no Toural, desde o dia 29, e procediam à
sua distribuição pela população, guardando as maçãs rubicundas para as donzelas da terra.
Já no pregão de 1827 se lia
que
As maçãs, de ouro
não, mas tão perfeitas,
Tão dignas de ser
dadas, ser aceitas.
Que entre as belas toucadas
não irritem,
Mas a fagueiros risos
as excitem.
(Pregão de 1927)
Quando, em 1834, por força da
extinção dos dízimos, a Colegiada deixou de receber a renda de Urgezes, também
deixou de pagar o que era devido aos estudantes, o que deu origem a um célebre
litígio judicial, que acabaria com sentença a favor dos cónegos.
Depois de 1834, os estudantes
continuaram a entregar as maçãs às raparigas, em dia de S. Nicolau, sendo
corrente a afirmação de que seriam colhidas pelas suas próprias mãos.
Iremos todos, de
prazer arfando,
Rubros pomos colher,
maçãs mimosas,
Para vir ofertar às
mais formosas.
(Pregão de 1842)
Aquando do ressurgimento das
festas, em 1895, a entrega das maçãs atingiu particular brilho, como por
aqueles disa relatava o Vimaranense:
No dia imediato pela
uma hora da tarde a distribuição das maçãs às damas que nas suas varandas as
disputaram à porfia, e cujas toilettes vistosas imprimiam um cachet alegre e
encantador a esta festa juvenil. Antes da distribuição das maçãs o Bando
académico, vindo de Santo Estêvão, andou em comum pelo centro da cidade
ostentando as suas luxuosas vestes. Era formado por 40 cavaleiros e 5 carros.
Antes de se dividir pelos diversos pontos da cidade o seu aspecto era realmente
surpreendente e deslumbrante
Nos anos que se seguiram, a
entrega das maçãs continuou a ser um dos números centrais das festas dos
estudantes de Guimarães. Em 1899, o programa anunciava-as assim:
No dia 6, das onze
horas para o meio dia entrará nesta cidade a triunfante cavalhada, vinda dos
lados da Vaca Negra, pela rua de Alegria, rua de Camões, S. Francisco,
circulando o pinheiro, S. Dâmaso, Senhora da Guia, Oliveira, rua da Rainha, rua
de Santo António, Gil Vicente, Paio Galvão, Toural e novo círculo ao pinheiro.
Daqui, à voz de – destroçar -distribuir-se-ão as
“Vermelhas maçãs, que
as donzelas
Recebem em suas
próprias janelas.”
No entanto, apesar da
promessa, o cortejo não atingiria o fulgor prometido, tendo o jornal O
Comércio de Guimarães classificado a entrega das maçãs daquele ano como muito pobrezinha, apenas uma dúzia de rapazes, se tanto, tomaram parte
neste número do programa, sem dúvida o mais distinto de todos os dos festejos.
Em 1901, ao contrário do que
era costume até aí, em que a entrega das maçãs acontecia de manhã, os estudantes
iniciaram a distribuição às três horas da tarde, depois da continência à bandeira escolástica, hasteada no pinheiro. Nos anos
que se seguiriam, realizar-se-iam ora ao meio-dia, ora de tarde, mas a
tendência será para empurrar a celebração para horas mais tardias.
Em 1903, organizou-se uma comissão de senhoras,
incumbida de premiar o melhor carro do cortejo da entrega das maçãs. Segundo
anunciava O Comércio d e Guimarães, estariam a ser preparados, pelo menos, uns
14 carros, bem enfeitados, e com bons costumes. Dias depois, o Independente
relatava dava conta dos resultados da avaliação da tal comissão:
A entrega das maçãs
às gentilíssimas senhoras de Guimarães, realizou-se ontem, aparecendo alguns
estudantes ricamente vestidos em carros luxuosamente postos, sendo conferido o
prémio das senhoras aos srs: Joaquim Meneses e Gualter Martins, constando o
prémio de um bandolim e o segundo de um alfinete de ouro.
Zeca Meira, muito
engraçado, representando uma formosa leiteira muito catita, um verdadeiro bijou.
Foi este estudante o
que mais engraçado se apresentou no cortejo das maçãs merecendo por isso o
prémio da consagração popular. Também se destacaram os académicos João Artur,
Couto, Fortunato Sampaio, Fernando Sampaio Bourbon e Gonçalo Sampaio Bourbon.
Em 1903, o cortejo foi muito
participado, embora tenha sido classificado como o “mais pobrezinho” que
até então se fizera, porque lhe faltou a banda de música a tocar o hino
escolástico. Nos tempos que se seguiriam, este número das festas nicolinas
tenderia a ser classificado mais vezes como um fiasco do que como um sucesso. A
adesão dos estudantes a este número variava conforme os anos, mas era visível
que a tendência seria para uma progressiva perda do antigo brilho. E, com altos
e baixos, esta foi a tendência que se manteve até aos nossos dias, em que o dia
de S. Nicolau, 6 de Dezembro, foi deixando de ser o dia principal da festa.
Como se percebe, o cortejo e a entrega das maçãs eram, no passado, algo
diferentes daquilo que são hoje. Eram, desde logo, muito mais espectaculares,
porque os estudantes vinham, desde Urgezes, a cavalo (os mais novos) ou em
carros (os outros). Em chegando ao Toural, davam meia volta ao pinheiro, em
homenagem a Minerva. Seguidamente, dispersavam-se pela cidade, entregando as
maçãs espetadas nas pontas das suas lanças, enfeitadas com fitas coloridas, às damas
que as aguardavam nas janelas e varandas das suas casas. Não havia, como se
percebe, um local fixo onde elas se concentravam à espera dos seus cavaleiros,
que distribuíam as maçãs sem desmontarem dos cavalos ou dos carros que os
transportavam.
Do que acima se disse, podemos dizer que, a perda do antigo fulgor das maçãzinhas
não se deve às mudanças de local que aconteceram ao longo do tempo: na origem
toda a terra, depois o Toural, a seguir as Praças de S. Tiago e da Oliveira,
agora novamente o Toural. Sou de opinião de que o Toural lhes dá maior
visibilidade, mas que não será o sítio que lhes devolverá o brilho. O raiz do
problema assenta, do meu ponto de vista, da perda de espectacularidade que
afectou este número das festas de S. Nicolau. É que, se ainda há donzelas, não
muitas, que aguardam à janela a chegada dos seus cavaleiros, não deixa de ser decepcionante vê-los chegar apeados...
Mas não é aqui que bate o ponto do declínio das maçãzinhas, como a seguir veremos, quando falarmos
das Danças.
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