A entrega das maçãs (foto de Guimarães2012) |
Em 1898, João de Meira, então com 17 anos de idade, fundou em Guimarães A Parvónia, um jornal de arte e crítica, que deu que falar, pela sua irreverência. Dele
já aqui falamos, e a ele voltaremos. Para já, aqui fica um texto de A Parvónia,
em que, assinando com o nome do demo, João de Meira se dirige às moças de
Guimarães, para lhes dar um par de conselhos, entremeados por trechos de
pregões de Bráulio Caldas e de versos de académicos de inspiração inflamada.
Carta a
Vós senhoras de pura e fina raça
(acerca das festas a S. Nicolau)
Venha conversar um pouco convosco.
Damas de
Guimarães, mimosas flores-de-Liz,
falar-vos de um assunto mais velho do que o pecado, porque antes que Eva
pecasse de parceria com Adão, já a maçã pendia da árvore fatal. E é justamente,
acerca da maçã, o fruto que a vossa boca
rosada aromatiza e morde, que necessito de vos dizer estas coisas de nenhum
modo banais.
Eleitas do
Senhor... damas de Guimarães,
a aceitação de ofertas implica gratidão aos oferentes.
Aceitando as maçãs contrahis uma obrigação, ficais em dúvida para com os
académicos que vo-las oferece- ram
Gomo pagais essa dívida? Como vos desembaraçaes dessa obrigação? Que lhes
ofereceis em troca? O vosso amor?
Tendes acaso amor suílicienle para todos os que passarem cavalgando sob
vossas janelas e voltados na sela vos oferecerem maçãs?
Eu não duvido, não, que o vosso amor,
Donzelas, ó
rivais da Aurora a despontar,
chegue para todos os garbosos académicos que metamorfoseados em pajens,
em tunos, em pachás e outras figuras carnavalescas, vos brindam com o fruto em
questão, mas peço licença para vos recordar que esse amor, essa ternura infinda
não deve ser distribuída em rações como o pão dos pobres de Santo António.
Convindo porém em que de um só aceiteis com uns restos de atavismo, com
uma predisposição que remonta a Eva, a maçã oferecida, quero ainda prevenir-vos
de que muitos desses académicos vestem sotaina negra, cor dos corvos e da alma
de muitos deles e decerto a nenhuma de V. Exas. convém a posição de Hermengarda
de Euricos tão prosaicos e tão saturados de latim.
*
Vós que tendes
um altar no peito dos rapazes,
recebestes um soneto das mãos de um académico, mas ignorais que o prazer
de ver a poesia em letra redonda e de vo-la ofertar, custou ao vate o
amolgamento diário das costelas de há tempos a esta parte.
Vós que tendes mães que vos adoram, vós que sois todas bondade, ignorais
o que seja um parente tirano incapaz de compreender os altos destinos
reservados ao poeta que vai rabiscando sonetos nas páginas brancas de um compêndio.
Frustrado intento, o de querer vedar com tareia as torrentes de poesia
que lhe irrompem do cérebro anormal.
Quando um homem sente em si o fermento de três Petrarcas num arcaboiço de
Camões, é im-possível abafar-lhe com palmatoadas os gritos de Génio, porque o Génio,
minhas senhoras,assim como a Asneira, rebenta quando é comprimido. Aquele
soneto era uma explosão. De Génio? De Asneira? Permiti-me que não entre em averiguações
de tal ordem.
Intitulava-se — A VÓS... Desconfio que o titulo acoberte uma insinuação
malévola; temo que chamando-vos “avós”, queira chamar-vos velhas.
………………. Damas,
rolas gemedoras
Que voais ao
nosso lado sedutoras
guardai o soneto, bem estimado, na caixinha de cartonagem onde conservais
os sabonetes e os lenços bordados, guardai-o que ele representa muito lágrima,
muita tareia e pedi a Um chamado Deus
que se compadeça de uns de cérebro anómalo como o poeta.
*
Recebestes também
Epopeias do
Azul com versos do luar,
de um outro académico três quadras que rematam:
Quero dar-te a
minha vida
E por ti quero
morrer
Não sei se V. Ex.as estão dispostas a deixá-lo imolar-se para remir os
pequeninos pecados que por acaso tenham. Mas se tal vão fazer, eu lhes rogo,
suspendam o sacrifício inútil. Suspendam, visto o poeta-académico não ser cordeirinho
puro que se possa imolar a Jeová,ou bode expiatório sobre o qual possam V. Exas. descarregar suas culpas.
*
Houve ainda um terceiro poeta que não contente com sua invejável posição
de mamífero placentário da ordem dos primatas, vos disse, minhas senhoras,
pretender ser transformado em flor, à semelhança de Jacinto. Foi um modo encoberto
de pedir que o tragam ao peito; há nos versos uma saudade dos tempos em que o
vate tinha ama.
*
Digam-me V. Exas. que eu quis fazer paradoxo, e digam-me eles, os académicos,
que também eu, um dia, afivelei a mascara de veludo negro e de chapéu de dois
bicos, sapato de fivela, em traje de tuno compostelano, fiz aquilo que hoje, se
não acho ridículo, ao menos me parece, velho e sem significação; digam-me isto
que eu responderei apenas:
— É verdade, e não fiz uma asneira. Fiz uma criancice.
Todos esses maviosismos que pedi emprestado à lira de Bráulio Caldas
tiveram por fim adoçar as rudezas do meu carácter de Diabo e pôr nesta carta
umas tonalidades melífluas muito convenientes a quem, como eu, vem conversar
com senhoras.
O Diabo
[João de Meira]
A Parvónia, Guimarães, 5 de
Janeiro de 1899
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