Efeméride do dia: Veneno


9 de Setembro de 1822
Na rua Nova do Muro, em casa da morada de Custódio Domingues Torres, surrador, casado com Antónia Bernardina, fez-se sequestro nos bens do mesmo, que eram apenas roupas e poucos e fracos móveis, pelo escrivão e pelo meirinho, o qual estava preso na cadeia da correição pelo crime de morte. Foi conduzido pelo alcaide António José Rodrigues e por 1 escrivão e 2 oficiais, para a cadeia da Relação do Porto, onde entrou por portaria do Governador das Justiças a 5 de Novembro de 1822, remetido pelo juiz substituto de Guimarães. O preso, por andar trôpego das pernas, foi a cavalo e sua e sua mulher acompanhou-o também a cavalo, no que gastaram 3 dias. Os 2 oficiais foram a pé; os outros a cavalo. Houve 2º sequestro em 9 de Dezembro de 1822. Tudo foi arrematado por 44$075 réis para pagar as despesas judiciais de 43$817; sobraram 258 reis. O Custódio era criminoso pela morte, por envenenamento, de sua sogra Custódia Maria Leite, mulher de Manuel António Teixeira, da dita rua, em 28 de Julho de 1822.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 242.)
No passado, as mortes não acidentais por envenenamento eram relativamente frequentes. Se, na maior parte dos casos, o veneno era o último recurso dos suicidas, não era só na literatura policial ou romanesca que era a arma de crimes. O delito de propinação de veneno está tipificado na legislação portuguesa desde tempos remotos. Trata-se de um crime quase sempre praticada por pessoas próximas da vítima e, na maior parte dos casos, estava associado à cobiça: filhos que envenenam os pais, para apressarem as heranças; criados que envenenam patrões, para se apropriarem dos seus bens. Pelo carácter sub-reptício do instrumento do crime, é de crer que a maior parte dos envenenamentos nunca fosse descoberta. Vejamos alguns casos ocorridos em Guimarães, em tempos diferentes.
No dia 28 de Julho de 1822 faleceu na rua Nova Custódia Maria Leite, casada com Manuel António Teixeira. Faziam as suas refeições em casa da filha e do genro, Antónia Bernardina e o surrador Custódio Domingues Torres, mas viviam num quarto alugado, por causa das más relações que tinham com a filha e o seu marido. Quando se soube como morreu Custódia Leite, não houve lugar a dúvidas: fora envenenada pelo genro, que já prometera fazê-lo, com a cumplicidade da filha. João Lopes de Faria descreve a ocorrência:
O envenenamento foi no caldo ao jantar, a sogra comeu-o todo, o sogro comeu pouco e deixou-o por estar quente; a mulher entrou em aflições e ânsias, fugiu pela casa fora, em que tinha reserva e estavam todos, para uma fronteira em que dormia e o marido, já quase sem sentidos e moribunda, e faleceu às horas da tarde; o marido teve menos aflições e vómitos por ter comido pouco caldo e em antes laranja com pão. A sogra e sogro cozinhavam na casa da filha e genro, em que tinham reserva, como acima fica dito, mas em separado, e dormiam num quarto alugado fora em casa fronteira, por causa das contínuas questões de há 5 meses e dizer o genro publicamente e muitas vezes que os havia de matar, com uma faca ou com veneno, que 5 réis ou 10 réis faziam a festa.
O cadáver de Jerónimo Marques, negociante de ferragens vimaranense, foi depositado no hospital da Misericórdia de Lamego na noite de 9 de Fevereiro de 1842. Entre os que o foram ver, nessa noite e na manhã do dia seguinte, sussurrava-se que tinha sido assassinado, dizendo-se que mandando o amo ao moço fazer café, e apresentando-lho, como o dito café estivesse muito quente, o amo principiou a tomá-lo às colheres; mas como lhe achasse um gosto repugnante o mandou retirar, dizendo ao moço que o café não estava bom, ao que este lhe tornou em resposta, que ele amo o tomaria como efectivamente fez, seguindo-se a isto as desordens fisiológicas consequentes da ingestão de venenos corrosivos na economia animal e a morte. Feita a autópsia, com a presença das autoridades judiciais, concluiu-se que a morte fora causada pela ingestão de óxido branco de arsénico. A notícia foi publicada no Periódico dos Pobres do Porto.
Verdadeiramente invulgar foi o caso que deu que falar em Guimarães no final da Primavera de 1909.
No dia 30 de Maio de 1909, faleceu numa casa do Largo da Misericórdia, Jacinto Fernandes, de 60 anos, criado de servir de Silvino Aguiar e de Maria Amélia Vieira, uma das famílias mais distintas e estimadas do Guimarães. Depois de confirmado o óbito por um ilustre clínico vimaranense, e observadas as formalidades legais, fez-se o funeral, sendo Jacinto sepultado no cemitério municipal da Atouguia.
Segundo se diz, o morto era possuidor de uma fortuna orçada em 5 a 6 contos de réis, não aparecendo no espólio os valores correspondentes a esses haveres.
No sábado seguinte, dia 5 de Junho, a cidade era surpreendida pela prisão, ao nascer-do-sol dos patrões do defunto criado Jacinto e das suas criadas de servir. As detenções foram feitas por ordem do administrador do concelho, por ordem do administrador do concelho a solicitação do procurador régio da comarca de Guimarães que, ao que se sussurrava, havia recebido, dias antes, uma carta anónima denunciando os amos do morto como autores de um crime de envenenamento praticado na pessoa do seu serviçal. Era também voz corrente que o fiando Jacinto possuía uma fortuna de 6 ou sete contos, que não foi encontrada. De indagação em indagação, o procurador reunira indícios que o persuadiram de que tinha mesmo acontecido um crime. Daí às prisões, foi um passo. A acusação visava Amélia Vieira como a responsável pelo suposto homicídio, suspeita que ganhou foros de credibilidade assim que se viu que o marido fora libertado no mesmo dia da sua detenção, por se provar a sua inocência.
O primeiro jornal a dar a notícia à cidade foi O Comércio de Guimarães, com uma nota com o título suspeitas de envenenamento, onde informava que corriam as mais estranhas e variadas versões, que não enumeramos por serem tão extraordinárias e encontradas que só elas ocupavam meia dúzia de números do “Comércio de Guimarães”. A pedido do representante do Ministério Público, procedeu-se à exumação do cadáver, que foi autopsiado no dia 7, sendo as suas vísceras remetidas para análise no Laboratório Municipal do Porto. Segundo os jornais, a autópsia terá sido inconclusiva, ficando a aguardar pelos resultados das análises para se confirmar se houve ou não envenenamento.
A prisão de Amélia Vieira por suspeita de homicídio por envenenamento era, por aqueles dias, o tema de todas as conversas. A opinião pública inclinava-se para a culpabilidade da arguida, que teve no jornal Notícias de Guimarães do seu lado. Nas páginas deste jornal, acusou-se as autoridades administrativas e agentes policiais, mais do que uma vez, de procederem com leviandade e precipitação. Na sua edição do dia 17, escrevia-se:
Apesar das investigações feitas em diversos domicílios, inclusive na administração do concelho, por variadas e variadíssimos autoridades administrativas e agentes policiais, e não obstante os boatos propositadamente espalhados para orientar desfavoravelmente à acusada a opinião pública, a verdade é que ainda se não descobriu a causa da morte do infeliz Jacinto Fernandes.
No dia 22 de Junho, o espólio do desaparecido Jacinto (dinheiro, letras, relógio e corrente) foi encontrado por uma criada de Amélia Vieira, em condições que têm dado origem a vários comentários, segundo informava o Comércio do Norte. Estava escondido numa rima de carvão de pedra que se encontrava junto ao quarto do falecido.
Tal descoberta, segundo o Notícias de Guimarães, demonstrava a inocência de Amélia Vieira. Para aquele jornal, começava a desmoronar-se o castelo que tinha como alicerce umas cartas anónimas e o depoimento das testemunhas desqualificadas. E prometia: oportunamente provaremos esses factos.
Aquela promessa não seria cumprida. Nos tempos que se seguiram, na imprensa vimaranense, caiu uma cortina de silêncio sobre a morte de Jacinto Fernandes. Porém, a efeméride que João Lopes de Faria registou, referente ao dia 30 de Maio de 1909, parece indicar que não havia dúvidas de que a morte do criado de servir que era dono de uma assinalável fortuna foi um crime e de que o seu autor havia sido Maria Amélia Vieira:
Faleceu, numa casa do Largo de Franco Castelo Branco, o criado de servir, Jacinto Fernandes, de 60 anos pouco mais ou menos, envenenado pela sua ama D. Maria Vieira, casada com Silvino Aguiar e filha do dr. Luís Augusto Vieira e de D. Emília Vieira; ela era de pouco tino e envenenou o criado Jacinto para o roubar, pois constava ele possuir 6 ou 7 contos, como roubou.


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