10 de Setembro de 1905
Antónia de Macedo “a Tiça”, solteira, e o seu amante António de Sousa,
casado, lavrador caseiro, moradores na freguesia de São Salvador de Souto,
assassinam neste dia o seu 3.º filho, masculino, logo após o nascimento, ele esfaqueou-o
como haviam feito ao 1.º e ao 2º. Pelas investigações policiais averiguou-se que
ele matou, há 7 anos, a 1.ª criança, feminina, afogando-a dentro de um bacio e
enterrando-a depois dentro da casa da amante ela abafou há 20 meses, em Março
de 1904, outra criança feminina que o seu amante enterrou também dentro da casa
dela; que ele matou, neste dia, a 3.ª criança, que foi encontrada, embrulhada em
farrapos, dentro de um cesto, debaixo da cama da mãe, por a Júlia, filha do
Sousa. A última criança foi exumada e autopsiada vindo-se a verificar que fora
morta com uma facada. A desnaturada mãe, depois da autópsia, obrigada pelo seu
amante, fugiu, vindo só a ser capturada, depois de incessantes investigações
policiais, no dia 21 de Novembro em casa de Adelina Rosa de Carvalho, moradora
no lugar de Tabuadelo, freguesia de Pinheiro, concelho de Vieira, onde o cabo
Narciso da polícia de Guimarães a foi capturar. O poder judicial mandou
proceder, pelo juiz de paz de S. Torcato, à exumação das duas primeiras crianças,
resultando nada se encontrar da criança enterrada, numa casa do lugar da Cruz,
haverá 7 anos, e encontrar-se a ossada da criança enterrada, numa casa do lugar
da Laje, haverá 20 meses. Nos princípios de 1906 foram julgados em audiência
geral, sendo ele condenado a 8 anos de prisão celular seguida de degredo por 20
anos com 2 anos de prisão no lugar do degredo, ou em alternativa na pena fixa
de 28 anos de degredo em possessão de 1ª classe em África, com prisão ali por
10 anos. O júri, a despeito das provas que a acusação fez sobressair com relevo
durante a discussão da causa, no uso do seu direito, absolveu a criminosa, por
entender que ela praticou o crime dominado por medo insuperável do mal maior e
eminente resultante das ameaças do réu amante.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 243.)
Há um par de anos, levei a um congresso de historiadores uma comunicação
em que abordava a problemática do infanticídio no Minho rural nos séculos XVII
e XVIII, que começava assim:
Ao longo das últimas
décadas, em grande medida graças ao trabalho desenvolvido a partir do Núcleo de
Estudos de População e Sociedade, da Universidade do Minho, tem havido avanços
significativos no nosso conhecimento do ciclo de vida (nascer, sobreviver,
morrer) das populações do passado. Os estudos desenvolvidos com base na
exploração das fontes paroquiais vão permitindo desvendar progressivamente os
comportamentos reprodutivos dos nossos antepassados, o modo como constituíam
novas famílias, as suas atitudes perante a vida e a morte. Ao mesmo tempo,
estes estudos têm feito ressaltar zonas de sombra nos comportamentos dos nossos
antepassados com repercussões demográficas.
Um desses territórios mal
conhecidos é o das práticas de controlo da natalidade no Portugal dos tempos
pré-industriais. Quase nada sabemos acerca dos processos adoptados para o
controlo da dimensão dos agregados familiares, apesar de nos depararmos, na
literatura moralista e normativa, com referências frequentes a práticas para
evitar a gravidez e a mezinhas e a manobras para mover (abortar). Também são vulgares as
alusões ao infanticídio.
Já no Tratado de Confissom, incunábulo de 1498 editado em
Chaves, se estabelecia que, quando o padre confessor abordasse o quinto
Mandamento, deveria fazer sete perguntas, entre as quais,
A quarta se fez ou deu
a comer ou deu de beber algumas ervas para que alguma mulher perdesse o fruto
do ventre. A quinta se abafou tanto a criatura com intenção de a afogar. A sexta
se por feridas que desse a mulher fizesse perder a criatura que trouxesse no
ventre.*
Todavia, tais referências
são quase sempre genéricas, sem nenhuma indicação que permita concluir com suficiente
objectividade qual o alcance de tais práticas. A lei previa castigos, por regra
particularmente gravosos, mas não se conhecem condenações por este género de
transgressão. É um pouco como as bruxas espanholas: que las hay, las hay.
O abandono de crianças e o
infanticídio faziam parte das preocupações recorrentes entre legisladores,
moralistas e defensores de doutrinas populacionistas dos séculos XVII e XVIII.
As leis, os tratados de moralidade e os manuais de confessores referem-se ao
infanticídio como prática costumeira na sociedade daqueles tempos. Mas, a tal
respeito, quase tudo se desconhece acerca da realidade vivida no quotidiano dos
homens e das mulheres. Há um espesso manto de silêncio sobre esta matéria.
Antes de ensaiarmos uma
abordagem a este tema, convirá notar a relatividade do valor da vida e da
morte, em função dos tempos e das circunstâncias. Em sociedades onde a morte,
nomeadamente a morte de crianças, é uma realidade com que as gentes convivem
quotidianamente, a vida e a morte (pelo menos a morte do outro) têm um valor
diferente daquele que, por regra, lhes é atribuído pelas sociedades ocidentais
e contemporâneas, onde a nossa se inclui. Por outro lado, recordaremos que nas
sociedades europeias pré-industriais as crianças eram encaradas com um maior
distanciamento do que nos tempos que agora Por outro lado, recordaremos que nas
sociedades europeias pré-industriais as crianças eram encaradas com um maior
distanciamento do que nos tempos que agora correm. O abandono de crianças, por exemplo,
era um recurso aceitável para a contenção da dimensão dos agregados familiares,
desde que houvesse justa
causa**. Mas, bem vistas as coisas, esta
realidade não é assim tão distante da dos nossos dias. Também hoje os casais em
idade fértil tendem a encarar os filhos como problemas, tanto pelos custos como
pelas responsabilidades que acarretam para as famílias. A maior diferença em
relação ao passado é que hoje a medicina e a ciência disponibilizam meios
eficazes para os evitarem.
Nesse texto, em que procurei
demonstrar que a prática do infanticídio, em especial de raparigas, era uma
realidade no comportamento reprodutivo das populações do passado da região do
Baixo Minho, com efeitos significativos nas variáveis demográficas. Era uma
prática oculta por um manto de silêncio,
mas existia e persistia.
À luz do pouco que se descortina, poderemos supor que o
infanticídio foi tolerado durante séculos, até ao tempo em que passou a ser
questionado e problematizado com maior severidade e consistência. Posteriormente,
e de uma forma mais activa já no século XX, terá passado a ser, na prática,
criminalizado (porque, na lei, sempre o foi). Adquiriu foros de escândalo
público com o advento da imprensa.
Os jornais de Guimarães noticiavam, desde meado do século XIX, os
casos de homicídio de recém-nascidos às mãos dos respectivos progenitores,
culpabilizando quase exclusivamente as mães. O caso da Tiça é exemplar.
A Tiça, Antónia de
Macedo de seu nome, mulher solteira de S. Salvador do Souto, na altura com 34
anos, era amante de um lavrador da freguesia vizinha de Santa Maria de Souto, António
de Sousa, casado, quase vinte anos mais velho. No dia 26 de Novembro de 1905,
os seus nomes viriam estampado numa página do jornal vimaranense Independente:
Grande Crime
Na esquadra policial
acham-se detidos Antónia do Macedo “a Tiça” e António do Sousa, ambos da
freguesia do Mosteiro de Souto.
A Tiça é acusada de um
repugnante crime de infanticídio praticado no dia 10 do Setembro último,
tendo-se evadido após ter sido descoberto o crime.
Depois de aturadas
diligências policiais pôde ser capturada no concelho de Vieira.
Acerca deste crime a
polícia guarda o maior segredo, constando-nos, porém, que trata de apurar
outros crimes praticados pela mesma Tiça e a responsabilidade que neles tenham
outras pessoas.
Soubemos que se tem
trabalha do de dia e de noite na descoberta dos autores ou cúmplices.
Independente, 26 de
Novembro de 1905
Nos dias seguintes, a Tiça e
o seu amante seriam julgados no impiedoso tribunal da opinião pública local.
Ninguém tinha dúvidas: a principal culpada era a mulher que, no Comércio de Guimarães publicado no
primeiro dia de Dezembro daquele ano, ela é classificada como uma terrível fera, capaz de um dos crimes mais monstruosos. Ao longo de
sete anos, ela e o seu amante teriam provocado a morte a três filhos seus
recém-nascidos, um por asfixia, outro por afogamento num bacio, o terceiro a
golpes de faca.
No final de Outubro, realizaram-se audiências gerais no tribunal
da Comarca de Guimarães. Entre os crimes em julgamento, havia dois casos de
infanticídio.
No primeiro, julgado a 30 de Outubro, a acusada Rita da Costa e Silva,
solteira, de 40 anos de idade, natural da freguesia de Santa Maria do Souto, acusada de ter matado, por estrangulamento,
uma criança do sexo masculino que dera à luz em 19 de Janeiro de 1905, por
volta das 11 horas da noite e que depois escondera num armário envolvida num
cobertor. O júri deu, por maioria, o crime por não provado. Não satisfeito,
o juiz anulou a deliberação e marcou nova audiência para o dia seguinte. A
decisão do júri seria a mesma, mas a acusada não sairia em liberdade, porque o
delegado do procurador régio anunciou que iria apelar para a Relação.
No segundo julgamento, iniciado no dia 6 de Novembro, os réus seriam
Antónia de Macedo, a Tiça, e António
de Sousa, vindo acusados de três crimes de infanticídio.
O Delegado do Procurador Régio, Leal Sampaio, fez uma acusação tão cerrada que todos que o
ouviram, e muitos foram os ouvintes e dos mais selectos, tinham ficado
convencidos da criminalidade dos réus, segundo a crónica do julgamento publicada no Comércio de Guimarães.
O destino dos réus parecia
traçado, em especial da Tiça, cujo
advogado de defesa era um jovem inexperiente, com apenas 22 anos de idade,
acabado de sair dos bancos da Universidade directamente
para aquela sala de julgamentos, uma vez que aquela era a sua estreia na barra
do tribunal.
A defesa do réu esteve a cargo do advogado António do Amaral, que proferiu um magnífico discurso, falando
perto de hora e meia e que deu provas da sua inteligência e capacidade jurídica.
Em seguida, tomou a
palavra o jovem defensor da Tiça. À
medida que ia expondo os seus argumentos em defesa da sua patrocinada, os
presentes, não fosse o aspecto físico do orador a desmenti-los, diriam, como
alguém o disse, estar perante um velho
jurisconsulto astucioso e inteligente, com longos anos de prática. Os
relatos dos jornais daqueles dias salientariam a eloquência, a sabedoria, a
capacidade jurídica e o espírito capaz de entrar nos assuntos mais
transcendentes dos conhecimentos médico-legais revelado pelo advogado
debutante. Falou durante quatro horas e meia e, no final das suas alegações,
percebia-se que havia convencido os
jurados e toda a numerosa assistência da não culpabilidade da sua patrocinada.
A intervenção da defesa da Tiça virou
o rumo do destino que parecia traçado. A acusação fizera sobressair provas
relevantes que pareciam apontar para uma sentença condenatória de António de
Macedo. As alegações do seu advogado de defesa convenceram o júri de que ela
havia praticado os crimes de que era acusada dominada por medo insuperável do mal maior e eminente resultante das
ameaças do réu amante. A sentença proferida pelo juiz, às quatro horas da manhã do dia 8 de Novembro de 1906, reflectiria esta
convicção.
O réu foi condenado a 8 anos de prisão celular, seguidos de 20 de degredo
em África, em possessão de 2.ª classe (pena cumprida no sertão de Angola), com
prisão até 2 anos no lugar do degredo. Em alternativa, a pena poderia ser de 28
anos na alternativa em possessão de 1.ª classe (pena cumprida em centro
urbano), com prisão até 10 anos. A Tiça
saiu absolvida.
Falta dizer que o jovem
advogado que assim se estreou na barra dos tribunais vimaranenses se
chamava Eduardo de Almeida.
*
O texto sobre o infanticídio no Minho rural, acima referido, pode ser lido aqui:
*Tratado de Confissom (Chaves, 8
de Agosto de 1489), Lisboa, Colecção Portugaliae Monumenta Typographica, IN-CM
(edição fac-simile, 1973).
**VEIGA, Cristóvão da – Casos
Raros da Confissam. Com regras, e modo facil pera fazer hua boa Confissão
geral, ou particular, Coimbra, Oficina de Joseph Ferreyra, p.364
0 Comentários