Histórias Atrás das Porta, um livro de Samuel Silva, com José Caldeira e Miguel Ribeiro |
Aqui cheira a aldeia. Mesmo que
estejamos no coração de Guimarães, cheira a vinho e a fumo pegado à parede…
Assim começa uma história carregada
de histórias que são contadas na primeira pessoa por aqueles que por onde
passam as memórias das capelinhas onde
se reúnem os fiéis devotos de um culto pagão, em libações a um deus que
desconhecem, que os gregos baptizaram como Dionísio e a quem os romanos trocaram o nome. Na maior parte dos casos, são
lugares quase secretos, onde se entra-por portas de vai-e-vem, por cima das
quais antigamente se penduravam ramos de loureiro anunciadores do tempo da
celebração. Nestes templos sem altar, mas com balcão, não existem cálices
sagrados nem hóstias, mas o sacrifício também se faz, como nas igrejas, com o
vinho e o pão. E com sardinhas e bacalhau frito.
Ali podem faltar as imagens de
santos, mas não falham os ícones de outras venerações.
São as últimas tabernas de
Guimarães, revisitadas por Samuel Silva, que passou a tinta as histórias que
por lá se contam, José Caldeira, que as ilustrou com as suas fotografias e
Miguel Ribeiro que as transformou em músicas com taberneiros dentro. Estão
guardadas num livro desenhado por Alexandra Xavier e editado pelo Cineclube de
Guimarães, lançado há poucos dias.
Do que lá se conta, não contarei,
que este livro não é para contar, porque é bom de ler e de ouvir. É uma
revisitação a sete tascas de Guimarães, cujas histórias são narradas por sete taberneiros,
uma espécie em vias de extinção Sete resistentes a um destino há muito traçado.
(se calhar, hoje já não são sete).
Antigamente, era muito diferente.
Por volta de 1620, existiam na vila
cerca de sessenta tabernas e vendedores de vinho. Dava uma média uma taberna
por cada cem habitantes. Ou, com mais rigor, uma taberna para menos de trinta
indivíduos do sexo masculino com idade superior a sete anos então residentes na
vila Guimarães. Vendiam, além de vinho atabernado, pão e sardinhas. Os vinhos,
esses, eram de vários tipos e origens, verdes e maduros, provenientes quer do
termo (os verdes), quer das terras de Basto (os maduros), ou de mais longe
ainda, como do Douro (os melhores).
Aqueles eram tempos em que, se muitas
vezes faltava o pão e se a carne poucos a viam, se o peixe rareava ou tresandava
de podre, que o mar ficava longe, e se até as couves do caldo eram useiras em
desaparecer, o vinho, esse, nunca faltava e só não era ao preço da chuva porque
esta não tinha preço.
No ano de 1642, por exemplo, um
litro de azeite foi tabelado por 86 réis, um quilograma de pão alvo atingiu os
25 réis, um quilo de carne de porco era vendido por 44 réis e a mesma
quantidade de açúcar branco ultrapassava 130 réis a mesma quantidade. Já um
litro de vinho verde não chegava os 12 réis (o maduro de Basto ficava-se pelos
14 réis o litro, e o maduro do melhor, atingia os 26 réis poro litro). Ou seja,
o que se gastava com um litro de azeite dava para comprar 7,7 litros de vinho
verde; um quilo de pão pagava mais de dois litros de vinho; um quilo de carne
de porco dava quase para quatro litros e um quilo de açúcar correspondia a
quase 11,5 litros de vinho.
Os exemplos que vão acima são do
século XVII, mas referem-se a uma realidade que, em larga medida, persistia
ainda em meados do século XX. Lembram-se daquele que dizia que o vinho dava de
comer a um milhão de portugueses? Nas décadas de má memória em que governou este
país, houve o tempo da fome. Faltava
o pão, faltava o bacalhau, faltava a carne, faltava o arroz, faltava o açúcar.
Tudo faltava. Só o vinho, bom (dizem as crónicas) e barato é que nunca faltou. Nem as tabernas que o vendiam.
Algumas das que agora estão nas Histórias Atrás das Portas ainda guardam
memórias desses tempos.
Um livro (e um disco) que vai bem com uma malga de vinho.
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