Topo sul do Toural, em meados do século XIX. à esquerda, a antiga igreja de S. Sebastião. Para a direita, ficavam as Lajes do Toural. |
15 de Julho de 1846
Houve neste dia uma função
na igreja de S. Sebastião, em cumprimento de uma promessa feita pelo prior da
mesma igreja, João Bento Correia, por ter estado em perigo de vida, em
consequência de ter levado uma facada, que, segundo se dizia, lhe fora vibrada
pelo egresso frei Francisco "Quatro-Olhos", o qual ainda andava pela vila
passeando mui frescamente. PL
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 42)
Em 1834, com a extinção das
ordens religiosas, os frades foram obrigados a abandonar os conventos. São os
egressos que povoam a sociedade portuguesa do século XIX. Uns quantos,
desprovidos de escrúpulos e de meios de sustento, dedicam-se à ladroagem,
seguindo uma tradição que em Guimarães tinha como figura de referência o
famigerado padre Lombela, egresso de S. Francisco, que se transformou em chefe
de uma quadrilha de salteadores de estrada, onde pontificavam outros membros do
clero.
O egresso frei Francisco
Quatro-Olhos não era exactamente um bandoleiro de ao pé da estrada, mas as suas
façanhas colocam-no em lugar de destaque entre os arruaceiros em actividade em
Guimarães em meados do século XIX. Nada sabemos acerca da sua origem - mas
parece certo que era de Guimarães -, nem a que ordem religiosa havia
pertencido, nem sequer porque era conhecido com o Quatro-Olhos. Poderia ser por usar óculos ou então por ser da viela
do Quatro-Olhos, nome por que foi conhecida, até 1880, a viela de Val-de-Donas,
em Guimarães.
A primeira notícia que temos
de Frei Francisco Quatro-Olhos é de
Abril de 1840, aquando da entrada em Guimarães do Barão de Almargem, da Casa de
Caneiros, político setembrista, que,m vindo de Lisboa, se dirigia para Braga,
por ter sido investido nas funções de general do comando da militar da
Província do Minho. O Quatro-Olhos
estava entre os mijados
(setembristas) que, junto a um arco festivo erigido para a ocasião na Ponte de
Santa Luzia, receberam o general com foguetes e vivas à Constituição de 1838.
O Quatro-Olhos será notícia, seis anos mais tarde, por questões familiares,
digamos assim. Conta o cónego Pereira Lopes que o prior de S. Sebastião, padre
João Bento Correia mantinha tratos ilícitos
com uma irmã do egresso, tendo já “apanhado um grande sova”, às mãos de um
seu irmão, que apanhara o prior de portas adentro na casa da família. No dia 11
de Julho de 1846, às 10 horas da manhã, o frade lavou a honra da família com
uma facada no prior, que quase o matava. Aconteceu na loja dos Macedos, junto
ao largo de S. Paio. Em seguida, foi passear. Foi aberto um auto de ocorrência
pelo juiz eleito, que não terá tido grandes consequências. No dia 15 do mesmo
mês, a vítima do Quatro-Olhos
tratou de cumprir na igreja de S. Sebastião uma promessa que havia feito quando
se sentiu em perigo de vida, por causa da facada que recebera. Nesse diz,
acrescenta Pereira Lopes, o agressor ainda andava pela vila passeando mui frescamente.
No dia 30
do mês seguinte, foi a vez de Frei Francisco Quatro-Olhos levar o que contar. Diz-se que andava aos pêssegos, a um agricultor do Cavalinho, tendo apanhado
um tiro nas pernas. O diário de Pereira Lopes esclarece que, naqueles dias, ir aos pêssegos era sinónimo, na gíria
dos ladrões, de fazer um roubo.
Na Guerra da Patuleia, que se seguiu à Maria da Fonte, setembristas e miguelistas
e lutavam contra os cartistas que apoiavam a rainha D. Maria II. Frei Francisco
Quatro-Olhos estava do lado dos patuleias, que dominavam a vila de
Guimarães, mas acabaria preso pelos seus correlegionários, para espanto das
gentes. Repetia-se a história do prior de S. Domingos, mas agora com o Quatro-olhos como protagonista. Às 10 horas do dia 2 de Março de 1842
foi preso, sob a acusação de manter tratos
ilícitos com uma mulher casada.
A mulher com quem andava envolvido estava casada com um tal Custódio
Moreira, das Lajes, em cuja casa ele entrava com o encobrimento de uma vizinha,
que lhe dava passagem pela sua. Seria na casa desta última que o Quatro-Olhos seria preso, sendo também
levada sob prisão a vizinha alcoviteira. A amante do frade conseguiu escapar,
recolhendo-se na casa de uma outra vizinha. No momento em que foi preso, o Quatro-Olhos tinha consigo uma clavina e
uma pistola, armas que foram apreendidas. Um dos que o prenderam, voluntário
aptuleia com fama de ladrão e malfeitor, aproveitou para dar duas baionetadas no frade, presumindo-se
que para tirar satisfação de qualquer desavença que teria com o Quatro-Olhos, que tinha a mesma fama.
Apesar do frade Quatro-Olhos
ser geralmente reconhecido na vila como um facínora, a sua prisão não deixou de
causar espanto entre os vimaranenses, quer pela natureza do delito que levara à
sua detenção, quer pelo modo como os seus correligionários políticos o
prenderam e maltrataram.
Moral da história, segundo Pereira
Lopes:
Eis a sorte dos maus que, mais cedo ou mais tarde, se não
perseguidos pelos seus inimigos, o são pelos seus chamados amigos!!!
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