Ruínas da Citânia de Briteiros (fotografia de Francisco Martins Sarmento) |
A Citânia de Briteiros (das Memórias do Cárcere)
A
meia légua das Taipas, tem Francisco Martins uma quinta, chamada de Briteiros.
Na casa magnífica da quinta vivia um par de cônjuges decrépitos, antiquíssimos
criados de pais e avós do meu amigo. A extensão de salas, câmaras, corredores
em longitude e forma conventual, de tudo me senhoreei. Escolhi o quarto, cujas
janelas faceavam com um recortado horizonte de arvoredos, e a cumieira chã dum serro
onde se divisam as relíquias de antiga povoação, que lá dizem ter sido Citânia,
cidade de fundação romana.
Algumas
horas ali passou comigo Francisco Martins; mas o máximo dos dias e as noites
vivi diante de mim próprio, na soledade daquele quarto, ou em perigosas excursões
à serra sobre um cavalo, que parecia vezado a passear sobre alcatifas.
Amanheci
um dia entre as ruínas da presumida Citânia. Vi algumas pedras derruídas em
cômoros, as quais denunciavam ausência de toda a arte, para de pronto desvanecer
conjecturas de edificação regular. Existiam vestígios de cisterna, e
descalçadas lajes dum caminho de pé-posto, que sem dúvida tinha sido estrada.
A meu parecer, não irá longe da fundação da monarquia portuguesa a construção
daquele presídio, se tal nome lhe cabe em vista dos estreitos limites do
terreno plano. Pode ser que, nas guerras de desmembração, sequentes às
primeiras conquistas do conde Henrique, guerras tão cruamente pelejadas nas
circunferências de Guimarães até às indeterminadas fronteiras, aquele ponto,
onde os visionários vêem cidades cartaginesas e romanas fosse singelamente um
miradoiro de observação, que abrangia grande parte do território convizinho de
Guimarães, então foco das operações militares da recente monarquia. Como quer
que seja, a chamada Citânia faria derrear um antiquário, sem ele descobrir nas
ruínas dela pretexto a narcotizar com um in-fólio a porção do género humano,
que ainda crê nas visualidades de antiquários, e decifrações arrevezadas de
pedras, e quejandos desfastios de sábios em medalhas e cipos – a gente mais
estafadora do mundo. O Sr. Domingos e a Sra. Rosa (eram os cônjuges meus
familiares) contaram-me que lá em cima na Citânia estavam moiras encantadas,
que eles tinham visto em certas noites vaguearem em torcicolos com luzinhas
pelo pendor da serra. Não desfaço na palavra do Sr. Domingos e da Sra. Rosa;
mas inclino-me a crer que os velhinhos vissem pirilampos. O mesmo não direi de
outra moira que viera num berço à flor do rio Ave; e no momento em que o
encanto se lhe quebrou, o berço se converteu em alva fraga. Nenhuma dúvida há:
lá está a fraga. A Sra. Rosa sabia as lendas todas, que Almeida Garrett
publicou, já desluzidas da campestre originalidade em que mas ela repetiu.
Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, 1864
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