Efeméride do dia: O Crime de Agra

Francisco 'Agra' Ribeiro Martins da Costa (1834-1901)

26 de Junho 1901
Morreu na sua quinta de Agra, em S. Torcato, vítima de um tiro de espingarda que traiçoeiramente lhe atirou de trás de uma parede, "José Segade", o nosso considerado vimaranense Francisco Ribeiro Martins Costa, vulgo "Francisco Agra", chefe local do partido "franquista". O seu funeral teve lugar no dia ... ( em branco, no original) na igreja Colegiada e o cadáver foi conduzido ao cemitério, fazendo o acompanhamento, em 56 trens, todas as pessoas de distinção desta cidade e bastantes de diversas terras que vieram prestar homenagem ao cadáver. No cemitério discursou o nosso mui distinto e querido deputado João Franco P. F. Castelo Branco.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 302)

Francisco Ribeiro Martins da Costa, conhecido como Francisco Agra, nasceu em 1834 e foi um dos maiores proprietários vimaranenses do seu tempo. Foi, durante mais de duas décadas, o chefe do Partido Regenerador em Guimarães. Apesar da proeminência da sua posição política, ao longo da vida apenas aceitou exercer um cargo público quando, entre 1872 e 1873, foi administrador do concelho substituto. Estudou Matemática e Filosofia na Universidade de Coimbra, tendo abandonado o curso no final do 1.º ano, depois de ter adoecido com tifo. Dedicava-se à administração das suas propriedades. Às quartas-feiras, dirigia-se para a sua quinta de Agra, em S. Torcato, de onde regressava na noite de sexta-feira.
Assim aconteceu na quarta-feira dia 26 de Junho de 1901. Na manhã daquele dia, depois de visitar uma propriedade em S. Roque, Francisco Martins Costa dirigiu-se para a sua quinta em Agra, onde deu ordens para que lhe fosse servido o almoço às 14 horas, saindo em seguida. Contra o que era costume, à hora em que era esperado, ainda não tinha regressado. Com o passar do tempo, a inquietação foi crescendo entre seus criados, que o aguardavam. Quando decidem ir procurá-lo, encontram-no tombado no chão, sem sinais de vida. O corpo foi carregado para casa, chamando-se um médico de S. Torcato, que confirmaria o óbito, apontando-lhe como causa uma congestão pulmonar. Entretanto, a notícia chegara a Guimarães e os amigos do defunto não tardaram a chegar à Quinta de Agra.
Foi quando dois dos amigos mais próximos de Francisco Agra, Eduardo Almeida e o Cónego Vasconcelos, meteram mãos à tarefa de preparar o cadáver para que pudesse ser velado, que se descobriu que o diagnóstico do médico de S. Torcato estava errado: uma ferida circular profunda, à altura do ombro, demonstrava que a morte resultara de um atentado a tiro. As diligências que se fizeram logo a seguir confirmaram estar-se em presença de um homicídio.
O cadáver de Francisco Agra foi transportado para a casa mortuária da Misericórdia de Guimarães, onde seria autopsiado.
Entretanto, faziam-se os preparativos para o funeral, que aconteceria no dia 1 de Julho, contando com a participação de figuras políticas de relevo nacional, entre as quais se destacava o conselheiro João Franco, que proferiu um dos elogios fúnebres lidos no cemitério. Na mesma altura, o cónego José Maria Gomes diria que:
A cidade devia-lhe muito, o que não lhe pagaria ainda que mandasse le­vantar junto da estátua do primeiro rei de Portugal outra a Francisco Martins
Entretanto, enquanto a especulação ia crescendo na cidade, as autoridades continuavam em campo, procurando desvendar o móbil do crime e encontrar os respectivos responsáveis. Na sua edição de 7 de Julho, o jornal O Progresso, publicava uma pequena nota com o título Prisão do assassino?, onde se lia, sob toda a reserva:
Consta-nos, à última hora,que se acha preso um tal Júlio de Lemos, proprietário, da freguesia de S. Torcato, que há poucas meses saiu da Penitenciária e sobre quem recaem algumas suspeitas em virtude de uma carta que aqui se recebeu vinda do Porto.
Dias depois, O Comércio de Guimarães informava que, até àquela data (12 de Julho), as autoridades prosseguiam os seus esforços, sem que alguma coisa tenha entrevisto de terminante e positivo, classificando como romance o que ia sendo reportado por alguns jornais diários.
No entanto, as suspeitas avançadas pelo jornal O Progresso pareciam confirmar-se. Na sua edição do dia 14, anunciava-se a prisão de Júlio de Campos, saído, há poucos meses, da Penitenciária. Era natural de S. Torcato, e sobre ele recaíam graves suspeitas de ser o autor do assassinato de que foi vítima o sr. Francisco Agra. Júlio de Campos estava detido na Cadeia Civil de Guimarães, incomunicável e guardado à vista. A polícia secreta – adiantava a mesma notícia – pouco ou nada deixa transpirar das diligências a que tem procedido, constando que em casa do detido haviam sido encontradas provas que o incriminariam como o autor material do crime. Aquando da edição seguinte do mesmo jornal, as dúvidas que subsistiam pareciam desvanecidas:
Parece não haver dúvida, conquanto não haja a precisa prova testemunhal, de que o assassino do snr. Francisco Agra foi o tal Júlio de Campos. As provas colhidas pela polícia secreta são esmagadoras e Júlio de Campos não as pode embargar.
No dia 26, O Comércio de Guimarães dá conta de uma carta precatória enviada pelo tribunal de Guimarães para o Porto, acompanhando a arma e as roupas do presumido assassino Júlio de Campos, para serem examinadas na morgue da Escola Média daquela cidade. No dia 9 de Agosto, o mesmo jornal já apresentava Júlio de Campos como assassino de Francisco Agra. Por essa altura, já o tribunal havia produzido o despacho de pronúncia contra
Júlio de Abreu Lemos, também conhecido por Júlio de Campos, solteiro, proprietário e capitalista, da freguesia de São Torcato, desta comarca, agora preso nas cadeias desta mesma comarca, e morador antes de preso no lugar de Campos, da referida freguesia, como autor do crime de homicídio, seguido do roubo de um relógio e corrente de oiro, no valor de cento e vinte mil réis, praticado em uma quarta-feira, vinte e seis de Junho passado, no lugar de Pousada, da Quinta de Agra, da sobredita freguesia, na pessoa de Francisco Ribeiro Martins da Costa, desta cidade, e praticado com premeditação, que resulta dos factos de ter o assassino esperado por mais de uma vez a sua vítima, armado de espingarda, e de o matar afinal, estando emboscado e oculto em um lugar da referida quinta de Agra, aonde era certo que a sua vítima devia passar.
No dia 12 de Dezembro, o réu (que, entretanto, por razões de segurança, havia sido levado para a cadeia da Relação do Porto) chegava de comboio a Guimarães, tendo atravessado a cidade de chapéu desabado e embrulhado num cobertor de lã. O julgamento iniciou-se no dia seguinte. Houve burburinho na cidade de Guimarães, quando se soube o nome do advogado de defesa de Júlio de Campos, um conceituadíssimo professor catedrático da Universidade de Coimbra e conhecido republicano: Afonso Costa. Murmurava-se que havia sido pago por um grupo de simpatizantes da causa republicana, com Bernardino Jordão à cabeça. Parecia confirmar-se a tese de que se estava perante um crime de natureza política. Os advogados de acusação foram Avelino César Calisto, também catedrático da Universidade de Coimbra, e Gaspar de Abreu Lima, de Guimarães.
O início do julgamento foi rodeado de grande aparato. Muito antes da hora prevista para o início da primeira sessão, uma multidão concentrava-se à porta do tribunal, na ânsia de ocupar os melhores lugares na sala de audiências, esbarrando numa força do Regimento de Infantaria 20, que impedia o acesso ao edifício. O juiz acomodou na sala os repórteres e correspondentes de jornais de Lisboa (Correio da Noite, Vanguarda, Diário de Notícias, Mala da Europa e Século) do Porto (Comércio do Porto, O Norte, Jornal de Notícias, que também enviou um “colaborador artístico”, O Primeiro de Janeiro, A Província, A Voz Pública e Diário da Tarde) e de Guimarães (O Progresso, Independente e O Comércio de Guimarães).
Até ao dia 17 de Dezembro, seriam ouvidas sessenta testemunhas. Para a imprensa próxima dos regeneradores, o veredicto só podia ser um. Escrevia-se no Independente, de 15 de Dezembro:
São tantas, tão concludentes,tão palpáveis e tão esmagadoras as indestrutíveis provas que o processo oferece, hoje do conhecimento de toda a gente, depois da leitura do processo, que o júri, apesar da defesa do réu estar confiada a um advogado distintíssimo, que se tem havido de um modo brilhante, não pode deixar de proferir um veredicto condenatório para não praticar uma monstruosa injustiça, que seria uma vergonha para a cidade de Guimarães.
E o advogado de acusação diria, dirigindo-se aos jurados, em réplica às alegações finais de Afonso Costa:
Não vos deixeis magnetizar pela palavra ardente de S. Exa.; resisti-lhe para que se não convença que também aqui, nesta terra tão laboriosa e ilustrada, veio encontrar um bando de inocentes que o acreditam cegamente; resisti-lhe. porque ao lado da acusação está a prova produzida, está a lei, e está uma cidade, uma comarca inteira a pedir inexorável a condenação do réu.
Porém, no dia 19 de Dezembro, o júri seria unânime no voto de absolvição do réu. Segundo João Lopes de Faria, a absolvição foi bem recebida no geral, excepto por alguns regeneradores caturras e pela família do assassinado. O Delegado de Justiça, Leal Sampaio, anunciou que iria interpor recurso da sentença. O réu saiu em liberdade, depois de prestar uma fiança de 5 contos (correram rumores de que o fiador seria Afonso Costa, que por sua vez seria caucionado por Bernardino Jordão). Às quatro da tarde do dia 20 de Dezembro de 1901, Júlio de Campos seguia numa carruagem para sua casa, acompanhado por Afonso Costa e pelo seu assistente.
Logo em seguida, o jornal Independente acusava o júri de inconsciência perigosa, por se ter decidido pela absolvição sem se importar com a opinião unânime dos espíritos esclarecidos e independentes, formados à luz e por força da lógica irresistível das provas da acusação.
Mas muita água ainda correria por debaixo das pontes até que o crime da Agra fosse deslindado.
Em meados de Fevereiro de 1902, o Supremo Tribunal de Justiça, depois de rever o processo, anularia a decisão do júri de absolver Júlio de Campos e ordenaria a repetição do julgamento.
A repetição iniciou-se no dia 16 de Fevereiro de 1903. O mesmo réu, a mesma acusação, os mesmos advogados. Na sala de audiências, os sentimentos dividiam-se, como se percebe pelo que então escreveu o jornal O Progresso:
Se nos olhos de uns transparecia a ansiedade duma vingança para o indigitado assassino, na maior parte dos rostos dos assistentes via-se a compaixão por esse desgraçado Júlio de Campos.
Na madrugada do dia 21 de Março, repetiu-se a sentença do julgamento anterior: o réu voltou a ser absolvido por unanimidade.
Nos jornais, continuavam a lançar-se suspeitas sobre Júlio de Campos e os seus protectores. Escrevia-se no Comércio de Guimarães por aqueles dias:
Desconhecido, apareceu rodeado de valiosos amigos; pobre, gastou dinheiro e ficou remediado; acusado, foi reconhecido inocente e unanimemente absolvido.
E, no Independente, ia-se mais longe. O articulista, afirmando não se conformar com o veredicto, acrescentava que as declarações dos agentes do Ministério Público de que não havia nenhuma pista que pudesse conduzir ao esclarecimento da autoria do homicídio de Francisco Agra, resultaram na absoluta e segura impunidade do infame autor de tão bárbara ocorrência.
Apesar de duas vezes absolvido, Júlio de Campos continuava a ser, aos olhos de alguns, o culpado.
Não passaria um ano até que se descobrisse que, afinal, o autor do crime tinha estado nos dois julgamentos. Mas não era Júlio de Campos.
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Muito se murmurou acerca dos motivos que terão levado um advogado com o renome de Afonso Costa ter vindo a Guimarães para defender um pobre diabo. Cogitou-se que teria sido chamado e pago por republicanos locais, com Bernardino Jordão à cabeça. Não terá sido bem assim. Afonso Costa defendeu Júlio de Campos assim como defendeu, pro bono, diversos outros acusados de crimes de natureza política. Defendia, por convicção política, aqueles que, sendo julgados à luz da lei anti-anarquista de 13 de Fevereiro de 1896, teriam visto diminuídos os seus direitos de defesa e estariam sujeitos a penas especialmente pesadas, nomeadamente o degredo para regiões inóspitas do Império português.

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3 Comentários

Castelar disse…
Só chamo a atenção para o erro na data da repetição do julgamento, onde diz "A repetição iniciou-se no dia 16 de Fevereiro de 2003" deveria ler-se 16 de Fevereiro de 1903
Só agora vi. Obrigado. Vou corrigir.
Em 1944 foi publicado um grosso volume intitulado "Os grandes dramas judiciários" de Sousa Costa (1879-1961) sendo um dos capítulos dedicado a este crime. Li algures uma critica a este capitulo por ser fantasioso.
Nos alfarrabistas ronda os 45 a 70 euros.