Efeméride do dia: Guimarães celebra Gil Vicente


Pormenor do monumento a Gil Vicente e ao teatro português, oferecido à cidade em 2002, aquando da celebração do 5.º centenário vicentino

8 de Junho de 1902

Domingo. - (Terceiro dia de ) celebração do 4º centenário da fundação do teatro português pelo nosso patrício Gil Vicente. Ao romper da alvorada uma girândola de foguetes e três filarmónicas percorreram as ruas da cidade tocando o hino da Sociedade Martins Sarmento, iniciadora das festas e a quem elas mais deveram. À meia hora da tarde, conforme a resolução da vereação de 4 do corrente, houve, nos paços do concelho, sessão solene que a Câmara ofereceu à Sociedade Martins Sarmento; falou o abade de Tagilde, presidente desta Sociedade, rematando por oferecer, ao arquivo da Câmara, um exemplar do número especial da Revista de Guimarães, encadernado em pergaminho, o qual foi, pelo dr. Avelino Germano da Costa Freitas, depositado nas mãos do presidente que logo discursou, seguindo-se o general reformado João Augusto de Eça de Chaby, adoptivo de Guimarães, e foi assinado um auto para se guardqr no arquivo da Câmara. Saiu então o bando com que a Câmara dava parte das festas e pedia que iluminassem (as casas e ruas), ia uma filarmónica e atrás os empregados da Câmara com capas de seda preta abandadas de branco e chapéus de três bicos orlados de arminho. À noite a iluminação na Rua de Gil Vicente, Toural e S. Francisco era profusa e vistosa; a banda do nº 20 de infantaria tocou no jardim do Toural e outras em Gil Vicente e S. Francisco. No teatro de D. Afonso Henriques, à noite abriu o sarau o dr. Gaspar de Abreu Lima, vice-presidente da Sociedade Martins Sarmento; tomaram parte D. Alexandrina Castagnoli e o violinista Henrique Carneiro (...). Depois da meia-noite o dr. Gaspar de Queirós Ribeiro (...), principiou a conferência sobre a obra de Gil Vicente, teve estrondosa ovação e do teatro para o hotel, onde estava hospedado, foi acompanhado por muitos cavalheiros dando-lhe vivas. - Vide vol. XIX da Revista de Guimarães, fl 182 e seguintes.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 250)
A biografia de Gil Vicente é obscura. Não existem certezas quanto ao lugar e à data em que nasceu, não se sabe com segurança quando morreu, muito menos quanto ao facto de ter tido a profissão de ourives, sendo-lhe atribuída a criação da célebre Custódia de Belém. A sua obra não ajuda a esclarecer estas incertezas.
Quanto à terra onde veio ao Mundo, têm sido defendidas várias hipóteses, mas não existe nenhuma demonstração de que não seja certa a que avançou o genealogista quinhentista D. António de Lima Pereira, autor de uma obra com o título de Linhagens dos Fidalgos de Portugal, manuscrito largamente copiado e anotado por outos genealogistas. Segundo António Caetano de Sousa, “é este livro dos mais acreditados que se têm escrito”. A credibilidade do que escreveu António de Lima Pereira acerca do nascimento do fundador do teatro português ganha força se atendermos a que ele era alcaide-mor de Guimarães, em 1570, num tempo em que a memória Gil Vicente ainda seria viva, nomeadamente através de pessoas da sua família.
Assim sendo, compreende-se a ligação de Guimarães à figura deste escritor, tendo dado o seu nome, ainda no século XIX, a uma rua, rasgada em 1873, e a um teatro, e que, em 1902, nesta cidade tenha sido assinalado com particular relevo o quarto centenário da fundação do teatro português, com a leitura do Monólogo do Vaqueiro, por ocasião do nascimento do príncipe D. João, filho do rei D. Manuel I. A iniciativa foi tomada pela Sociedade Martins Sarmento, que acompanhou o Conselho de Arte Dramática de Lisboa, começando a ser preparada no primeiro dia de Abril daquele ano, quando, em reunião da sua direcção, o Presidente, o Abade de Tagilde, propôs que se estudasse “a forma pela qual a Sociedade se associaria à celebração do quarto centenário da fundação do teatro nacional”. No dia 9 de Abril a direcção decidiu que o número da Revista de Guimarães referente ao segundo trimestre daquele ano seria “consagrado ao poeta Gil Vicente”, como foi lembrado na sessão anterior e escrever à Câmara solicitando-lhe que se associasse às comemorações. No dia 7 de Maio, já começava a ser delineado o programa das comemorações, para as quais se conseguira a adesão da Câmara, de outras associações e da imprensa, tendo sido decidido promover um sarau no Teatro D. Afonso Henriques e convidar o Padre Gaspar Roriz, então deputado, para proferir uma conferência sobre Gil Vicente. A comissão que se formou para organizar o sarau era constituída por Gaspar de Abreu, José Pinheiro e Rodrigo Queiroz.
No dia 8 de Junho de 1902, a cidade acordou ao som de foguetes e de três bandas filarmónicas que percorreram as ruas entoando o hino nacional e o hino da Sociedade Martins Sarmento. As ruas de Gil Vicente de Paio Galvão, a praça do Toural e o Largo D. Afonso Henriques (Alameda) estavam engalanaram-se de festa. Os correios distribuíram nessa manhã o número especial a Revista de Guimarães dedicado a Gil Vicente, onde colaboraram homens de letras  como Carlos Malheiro Dias, Luís de Magalhães, Bráulio Caldas ou Teófilo Braga, que escreveu no seu texto que “Guimarães é o foco glorioso onde o génio da nacionalidade Portuguesa tem encontrado as suas manifestações mais conscientes e profundas”.
Ao meio-dia e trinta minutos, ao salão do Tribunal da Comarca de Guimarães acolheu uma sessão solene alusiva ao centenário vicentino. À porta, os participantes eram saudados pela banda do Regimento de Infantaria 20. Usariam da palavra o Presidente da Câmara, Joaquim José de Meira e o Presidente da Direcção da SMS. A dado passo, o Abade de Tagilde explicou o objectivo que guiou a Sociedade Martins Sarmento quando decidiu avançar com a organização das celebrações em Guimarães do centenário do teatro:
Cuidava-se de solver uma dívida de quatro séculos a um vimaranense distinto entre os que mais o são, a um vulto proeminente que faz honra à nobilíssima nação portuguesa. Guimarães, que entre muitos outros títulos de honra se ufanava de ser a pátria do fundador da nossa nacionalidade, hoje ufana-se igualmente, graças a uma porfiada e paciente investigação, auxiliada por uma crítica erudita de contar entre as suas mais indiscutíveis glória a primacial figura do grupo dos iniciadores no desenvolvimento da literatura dramática da Europa.
O que se seguiu vem descrito no jornal Independente, na sua edição do dia 13 de Junho:

Finda a sessão saiu o bando à maneira antiga, composto dos empregados menores da Câmara, trajando capas de seda preta abandada de branco, chapéus triglochinos orlados de arminho e empunhando varas onde estavam pintadas as armas da cidade. O pregoeiro lia o seguinte bando:

A câmara municipal de Guimarães.
Faz saber a todos os habitantes deste concelho que no dia de hoje se completam quatro séculos que um dos vimaranenses mais ilustres, que os anais deste município registam, Gil Vicente, iniciou nos Paços reais de el-rei D. Manuel o teatro português, conseguindo para Portugal glória imortal e para esta terra que se orgulha de o contar entre os seus mais beneméritos filhos honra invejável!
A camara municipal, mantenedora e zeladora das preeminências deste concelho, cumprindo um dever indeclinável solicita de todos os vimaranenses que, entre outras demonstrações de público regozijo, se dignem, na noite de hoje, iluminar as suas casas, a fim de ficar consignado nos fastos de Guimarães que cesta data memorável foi solenizada com o brilhantismo de que é merecedora.
Guimarães e Paços do concelho, 8 de Junho de 1902. E eu José Maria Gomes Alves, secretário da câmara, o escrevi. - O presidente da câmara, Joaquim José de Meira.

As gentes de Guimarães corresponderam com entusiasmo ao apelo da Câmara.  À noite, iluminaram as casas e encheram as ruas. No Independente, que escreveu-se que as iluminações
eram dum belo efeito, sobretudo a do jardim do Toural onde tocava a banda de infantaria 20. Num coreto da rua de Gil Vicente estava a música de Sande e no do largo de D. Afonso Henriques a da Póvoa de Lanhoso. A filarmónica Boa União desta cidade tocava à porta do teatro.

O sarau literário-musical começou às nove da noite. Nele compareceu o escritor Carlos Malheiro Dias, então deputado, que tinha sido o primeiro a recordar no parlamento que se aproximava o do centenário da primeira representação de uma peça teatral portuguesa. No sarau participaram diversos artistas, dos quais se destacavam a cantora lírica portuenses Alexandrina Castagnoli e o violinista Henrique Carneiro

A sessão terminaria com uma conferência sobre Gil Vicente e a sua obra, que se iniciou quando já passava da meia-noite. O orador convidado seria, não Gaspar Roriz, como inicialmente se pensara, mas Gaspar Queirós Ribeiro, da Academia Real das Ciências.

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