O
Titi
Todo o luar
do seu sonho, a sua raivosa aspiração de Ideal, tomara enfim corpo e, como de
nuvens espumosas dum poente, se criam feerias, assim com tudo o que havia de
vago, de luminoso e de impalpável na sua alma a envolvera idealizando-a como
uma recordação de outrora. E visto que nunca amara e estava velho e seco pôs-se
a querê-la, por todas as que nunca beijara e pelas carícias que nunca mais
teria, náufrago que se agarra a uma única tábua de salvação quimera, ai, mas quimera
que lhe encharcava de oiro a alma e o fazia feliz.
Deixem-no
sonhar... Ao mesmo tempo que se pusera a adorá-la, começou a dor a retalhá-lo
fria e vagarosa, na tortura duma lâmina que lhe arrancasse a cada minuto com
esforço fibras, nervos,pedaços de coração e de cérebro. Era esta angústia:
Viu-se velho
e seco, tendo passado toda a sua vida no Sonho, sem ter realizado, amado,
conhecido a febre de viver por uma mulher, a angústia da dúvida, a recordação
dos beijos que por muito tempo sabem na boca a medonho ou a fel. E agora
exasperava-se: insultava-se pelas rugas que tinha e por ter deixado passar a
mocidade sem amor.
Analisava-se
e encontrava-se pícaro e sinistro; o Sonho tinha-o tocado dando-lhe aspectos de
visionário ou de louco. Estava calvo, o nariz aguçara-se formando-lhe com o
queixo um bico formidável de ave de rapina, e, sobretudo, havia nas suas faces
um rictus indecifrável, misto de riso e de concentração dolorosa.
A sua
timidez era enorme, e o desprezo que tivera pelas mulheres, de que vivera
sempre arredado, convertera-se em amor. Encontrava então na sua alma
delicadezas em que nunca pensara, carícias, restos de olhares, balbuciações quase
infantis, que o faziam ficar absorto e aniquilado.
Era certo. Lúcia
não o podia amar, e cheio de orgulho e de terror não se atrevia a dizer-lhe a sua
paixão. Antes queria viver naquele engano que o faria ao menos feliz, arredando
a realidade sempre má e brutal. Sonhava ainda, sonhava sempre, mais valia
afinal aquilo do que ouvi-la rir-se, despedaçar com o escárnio o seu Amor.
Tinha então, nas suas noites de circo, quando clamava ao mesmo tempo que Lúcia
galopava no corcel negro, confissões que se arrependiam, olhares que exprimiam
toda a sua paixão, para logo se transformarem, sem se atreverem a ir até ao
fim, em hilaridades. As suas palavras ardiam por vezes, para súbito caírem como
bexigas a estoirar. Os seus gestos começavam num frenesi a contar o que sofriam,
para acabarem por se torcer em epilepsias de cómico; a sua boca ia num esgar a
vociferar, arrebatado, doido, a narração da sua dor e terminava numa gargalhada
fria de palhaço. Era a sua vaidade e o seu orgulho que lhe o não deixavam. Se
ia a confessar-lhe o seu amor uma voz lhe pregava na alma: — Olha que ela vai
rir-se de ti! Pois tu não vês como és depressivo e cómico, palhaço! Olha que
ela vai fazer escárnio do teu amor da tua paixão, das tuas noites febris... Beija
com sofreguidão, calvo o grotesco, a sua carne de mármore, a vaga do seu peito,
mas em sonho, clovon! Afunda-te, passa horas, à beira dos seus olhos misteriosos, negros e profundos, como lagos,
mas em imaginação!... Que mais queres tu? Dir-lho e nem permitido te será já
sonhar! Dir-lho e os seus risos despir-te-ão, mostrar-te-ão sem ilusão, um
grotesco, claro que arrancas gargalhadas à multidão mesmo quando sofres... Se
tu visses como a tua dor é pícara!...
E um diálogo
estabeleceu-se entre ele e a dor, controvérsia em que ficava sempre vencido,
caído e aniquilado pela Dor.
Raul Brandão.
O
Micróbio,
n.º 39, 25 de Abril de 1895, p. 102
0 Comentários