"O Titi", por Raul Brandão



O Titi

Todo o luar do seu sonho, a sua raivosa aspiração de Ideal, tomara enfim corpo e, como de nuvens espumosas dum poente, se criam feerias, assim com tudo o que havia de vago, de luminoso e de impalpável na sua alma a envolvera idealizando-a como uma recordação de outrora. E visto que nunca amara e estava velho e seco pôs-se a querê-la, por todas as que nunca beijara e pelas carícias que nunca mais teria, náufrago que se agarra a uma única tábua de salvação quimera, ai, mas quimera que lhe encharcava de oiro a alma e o fazia feliz.
Deixem-no sonhar... Ao mesmo tempo que se pusera a adorá-la, começou a dor a retalhá-lo fria e vagarosa, na tortura duma lâmina que lhe arrancasse a cada minuto com esforço fibras, nervos,pedaços de coração e de cérebro. Era esta angústia:
Viu-se velho e seco, tendo passado toda a sua vida no Sonho, sem ter realizado, amado, conhecido a febre de viver por uma mulher, a angústia da dúvida, a recordação dos beijos que por muito tempo sabem na boca a medonho ou a fel. E agora exasperava-se: insultava-se pelas rugas que tinha e por ter deixado passar a mocidade sem amor.
Analisava-se e encontrava-se pícaro e sinistro; o Sonho tinha-o tocado dando-lhe aspectos de visionário ou de louco. Estava calvo, o nariz aguçara-se formando-lhe com o queixo um bico formidável de ave de rapina, e, sobretudo, havia nas suas faces um rictus indecifrável, misto de riso e de concentração dolorosa.
A sua timidez era enorme, e o desprezo que tivera pelas mulheres, de que vivera sempre arredado, convertera-se em amor. Encontrava então na sua alma delicadezas em que nunca pensara, carícias, restos de olhares, balbuciações quase infantis, que o faziam ficar absorto e aniquilado.
Era certo. Lúcia não o podia amar, e cheio de orgulho e de terror não se atrevia a dizer-lhe a sua paixão. Antes queria viver naquele engano que o faria ao menos feliz, arredando a realidade sempre má e brutal. Sonhava ainda, sonhava sempre, mais valia afinal aquilo do que ouvi-la rir-se, despedaçar com o escárnio o seu Amor. Tinha então, nas suas noites de circo, quando clamava ao mesmo tempo que Lúcia galopava no corcel negro, confissões que se arrependiam, olhares que exprimiam toda a sua paixão, para logo se transformarem, sem se atreverem a ir até ao fim, em hilaridades. As suas palavras ardiam por vezes, para súbito caírem como bexigas a estoirar. Os seus gestos começavam num frenesi a contar o que sofriam, para acabarem por se torcer em epilepsias de cómico; a sua boca ia num esgar a vociferar, arrebatado, doido, a narração da sua dor e terminava numa gargalhada fria de palhaço. Era a sua vaidade e o seu orgulho que lhe o não deixavam. Se ia a confessar-lhe o seu amor uma voz lhe pregava na alma: — Olha que ela vai rir-se de ti! Pois tu não vês como és depressivo e cómico, palhaço! Olha que ela vai fazer escárnio do teu amor da tua paixão, das tuas noites febris... Beija com sofreguidão, calvo o grotesco, a sua carne de mármore, a vaga do seu peito, mas em sonho, clovon! Afunda-te, passa horas, à beira dos seus olhos misteriosos, negros e profundos, como lagos, mas em imaginação!... Que mais queres tu? Dir-lho e nem permitido te será já sonhar! Dir-lho e os seus risos despir-te-ão, mostrar-te-ão sem ilusão, um grotesco, claro que arrancas gargalhadas à multidão mesmo quando sofres... Se tu visses como a tua dor é pícara!...
E um diálogo estabeleceu-se entre ele e a dor, controvérsia em que ficava sempre vencido, caído e aniquilado pela Dor.
Raul Brandão.
O Micróbio, n.º 39, 25 de Abril de 1895, p. 102

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