"O Gebo", por Raul Brandão

Raul Brandão


A Revista Nova foi uma publicação de carácter literário e artístico, de que apenas se publicaram oito números, entre Abril de 1901 e Janeiro de 1902. No primeiro número aparece um texto de Raul Brandão, em que o protagonista é uma das personagens recorrentes na obra brandoniana, um ser grotesco e atabalhoado, que suscita o riso, o desprezo e, raras vezes, a comiseração. Uma personagem, entre o lúgubre e o pícaro, que se destaca na História de um Palhaço, na Noite de Natal ou em O Gebo e a Sombra. Esta narrativa chama-se O Gebo e narra a história dum “velho gordo, de cabelos brancos estacados e um ar de aflição, que faz riso e piedade”. Haveria de ser incluída, com alterações, no volume Os pobres (1906). Aqui fica a versão da Revista Nova:


O Gebo

Heis-de tê-lo encontrado, esse velho gordo, de cabelos brancos estacados e um ar de aflição, que faz riso e piedade. Tomba às vezes na rua, levanta-se, e, todo enlameado, olha para os lados e chora; depois caminha esbaforido. Parece que vai gritar esse ser mole e gordo, de cabelos brancos estacados, e, de súbito, baixinho, pede-nos esmola. Tem um riso de humilhado e o aspecto de uma bola de sebo — de cabelos brancos estacados. É o Gebo. É um gebo, por ser pícaro e roto e por a desgraça o ter calcado aos pés até o tornar ridículo.

Triste existência sem ódio e sem gritos. A vida não na entendia e a cada empurrão tinha um olhar espantado e aflito, de quem não compreende. Que mal fizera? Pois a desgraça faz rir? O sofrimento faz rir?

E em torno as bocas escancaravam-se, ao verem-no gordo, pedinchão e desgraçado.

As piores ruínas resumem-se nesta seca frase: — ser infeliz. Há seres que nascem com uma sina — amargar a vida. Tudo lhe corria torto, até as coisas mais banais e mais reles, as coisas que para os outros nem mesmo existem, e ele punha-se a olhar para a desgraça, atarantado e estúpido. Que mal fizera para sofrer?

Além de desgraçado, este homem fôra sempre pícaro: assim no globo passam existências ignoradas de sofrimento e bondade, que não deixam o mais simples vestígio, como os veios de água escondidos e que no entanto são a vida da terra. Mesmo perto a chorar, a sua máscara, de cabelos brancos estacados, fazia rir.

Sempre a suar, quase sem saber gritar, nem saber queixar-se, o Gebo tinha um coração ígneo. Era destas criaturas a quem um montão de desgraças torna ainda mais ridículas: a ruína, a quebra, a miséria, a fome. Enlameado pela vida fora, resignado e chorão, ele aí vai...

— Ó Gebo!

— Anh?

E todos se riam ao vê-lo chorar de aflição. Diziam uns: Que não fosse tolo — E os pobres, a quem ele tanta vez valera, gostavam de o ver calcado e humilde como a terra dos caminhos. Qual é a razão porque a desgraça alheia consola a nossa própria desgraça, dizem-me?...

A tressuar, aflito, depois de espezinhado ainda esse ser mole e gordo aos quarenta anos, cria na vida como as árvores e as crianças crêem.

Em que hora aziaga encontrara a má sorte que nunca mais o deixou?

Há criaturas em quem a desgraça se escarrancha no cachaço e é para sempre! para toda a vida! Nunca mais as larga. Viera a quebra, aflições sem conto, ainda mais negras que o coração dos outros. Enganavam-no com a alegria de o verem rebaixado e perdido, empurrão daqui, empurrão dacolá, aos tombos por esse mundo.

Era casado o Gebo e tinha esta felicidade: uma filha. Oh uma filha!... Uma filha sempre prende à existência! Uma filha pequenina sempre tem nas mãozinhas uma força!

Assim esse velho ridículo e gordo também fôra feliz, outrora. Era destes lares apagados e sumidos, onde a vida corre com a monotonia duma fonte, sempre igual e pronta a apagar todas as bocas sequiosas. Uma casinha velha, um quintalório com seis árvores, um fio rumoroso de água, e as janelas abrindo para a sombra amiga das fruteiras. Ali era a felicidade. Dão-nos as árvores toda a sua sombra: nunca nos enganam.

Muito tempo mentira à mulher, que ia vivendo iludida. Ria o Gebo em casa com o coração torcido, para que elas fossem felizes mais algumas horas — últimas horas tiradas à desgraça. Até que um dia sucumbiu.

— Eu não te queria dizer... Mas, ó mulher! ó mulher!...

— Que é? Que foi?...

— Estamos perdidos, estamos perdidos...

— Perdidos?!

— Sim, estamos... E agora? agora?... Ninguém me vale, ninguém se importa. Tenho pedido, tenho andado... e já não posso. Estamos perdidos, mulher!

— Anh? Perdidos?

— Sim.

— Tu é que tens a culpa, não tens mesmo finura nenhuma. Riem-se de ti. Todos te enganam e ainda por cima se riem de ti. Anda, vai!. .. Tu que queres? Que há-de ser de mim e da pequena? Nós temos culpa das tuas tolices, das tuas desgraças?...

— Não, mulher, não, bem sei.

— Anda!

E ele voltava, todo o dia corria esbaforido, até que uma noite a mulher viu-o entrar, sem chapéu, enlameado, exausto — e de cabelos brancos estacados. A ingratidão embranquecera-o. Era ao crepúsculo. Tombado, como uma bola de gordura, tremia abalado pela dor, monologando baixinho:

— Oh, a minha filhinha! E todos se riram de mim, todos!... Ninguém se importa. Quem quer saber da desgraça dos outros? Ai, a minha filha!...

Começou uma vida desorientada e feroz. Parecia que de todos os lados havia vozes a clamar, a escarnecê-lo: — O Gebo! O Gebo! — Nunca mais houve paz na terra para ele: mesmo no seu lar tinha certos a toda a hora os ralhos da mulher desvairada e as lágrimas silenciosas da filha. Oh, essas horas férreas em que olhara em torno perdido e só vira secura e risos! essas horas tinham-lhe deixado suor de aflição para o resto dos seus dias. Tudo se arrasara E curvava-se sob as palavras da mulher, amachucado, sem forças para lutar, quebrado pelos desenganos e pela indiferença dos outros.

— E agora? agora? perguntava-lhe ela.

E ele, caído:

— Agora não sei, agora morremos todos à fome.

Batera em vão a todas as portas, aniquilado, sem ideias e sem forças. Só sabia chorar, mole e grotesco, enquanto a mulher, que a desgraça secara, lhe atirava impropérios, gritos:

— Mas levanta-te! Procura! Salva-nos!

Anda, Gebo! Ele lá ia, tornava aos amigos, pedinchão, desnorteado, atrás de empréstimos, de demoras, trocando as palavras e desatando de súbito a esbracejar em gritos e soluços...

Heis-de tê-lo encontrado a esse velho gordo, de cabelos brancos estacados, aos empurrões na vida e com um ar de aflição que faz riso e piedade.

— Ó Gebo!

— Anh?

— Conta.

E ele logo, em palavras soltas, precipitadas, bêbado de lágrimas:
— Ó Senhor!... Tanto tenho andado e tanto tenho sofrido! Quanto mais faço pior, ainda é pior. E já não posso mais, eu já não posso mais... Acabou-se! Só Deus sabe pelo que tenho passado, as desgraças que tenho rapado e as aflições, para arranjar ao menos o triste pedaço de pão para a boca... O pior é delas. O meu coração estala, tanto tenho sofrido. Trago a noite cá dentro. Que se lhe há-de fazer? Curtir a desgraça. Anh? Tenho pena de ter sido honrado...

E fica com a boca aberta, chorão, de cabelos brancos estacados.
Raul Brandão.
In Revista Nova, n.º 1, ano I, Lisboa, 5 de Abril de 1901, pp. 6-8

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