Raul Brandão |
Brandão assinou dois textos, repartidos por sete
edições da revista, com os títulos A Cidade e O Palhaço.
Nestes textos encontrámos personagens de A Morte do Palhaço, e alguns trechos que, com alterações, Raul Brandão incluirá naquela obra. No último número que saiu dos prelos, há um texto não assinado, com o título Titi, que é também de Raul Brandão.
Nestes textos encontrámos personagens de A Morte do Palhaço, e alguns trechos que, com alterações, Raul Brandão incluirá naquela obra. No último número que saiu dos prelos, há um texto não assinado, com o título Titi, que é também de Raul Brandão.
O ilustrador, Celso Hermínio, tinha sido, como
Brandão ainda o era, militar. Abandonou o exército por ter participado,
enquanto membro do Regimento de Caçadores 9, na revolta republicana do 31 de
Janeiro.
Aqui se começam a publicar os textos "microbianos"de Raul Brandão, com as respectivas ilustrações de Celso Hermínio.
A noite na cidade encantava-o com os seus
aspectos dolorosos e imprevistos. Tudo o que de dia é anguloso e duro, logo que
a noite se dilui, e a meia tinta, onde as figuras aparecem, dá toques de sonho
à cidade lôbrega e tortuosa. Os becos que surgem súbito, como bueiros rasgados
para o interior dos bairros viciosos, as covas das escadas cheias de mistério e
onde se não entra sem terror, os tipos que só de noite aparecem, rentes às
muralhas, envoltos na sombra, tímidos ou doidos, a esconder vícios, lágrimas,
crimes e canduras de alma, encantavam no e davam-lhe nas noites febris e de
insónia, a sensação dum galope através dum
sonho. As figuras não se fixavam bem e
toda a multidão se escoava no seu crânio com um
ruído de Mar, linhas tortuosas, olhares, esboços apenas, com riscos mal definidos e um ou
outro aspecto cavado mais fundo.
Havia muitos meses que ele não
punha os pés na rua. Depois de ter arrastado o enlameado manto púrpura da sua
ambição e do seu sonho pelas casas de hóspedes, de onde era escorraçado e
batido, fixara-se num covil e aí remoera meses as suas ideias negras sobre a
existência. Assim, nessa noite de lama e de bêbados, as coisas e as figuras
tomavam para ele feitios dolorosos e imprevistos… Certo vocês todos têm sentido
que as coisas como as pessoas nos são agressivas ou simpáticas.
Assim certos sítios afligem, torcem os nervos, dão ambição ou repousam. A
humanidade, que por ali tem passado,
tocado, deixando-lhes lágrimas ou risos, deu-lhes feição, individualidade,
tornou-as más, viciosas como velhas ardidas ou alegres e com bondade. Nunca
vocês sentiram, num dia abeberado de azul, em Maio, necessidade de abraçar uma
velha árvore e não perceberam acaso que até a pedra onde nos sentamos, quando
pequenos, a ver o Sol descer sobre o mar largo, nos conhece e tem alma?...
Assim ele nessa noite de lama, os nervos afinados
por meses de clausura e pelo tecer da sua quimera, via tudo sob tintas de
pesadelo. Tinha a visão da dor humana que a essa hora faria sofrer tanta gente
e ais de todos os doentes vinham em rebanhos até aos seus ouvidos e as lágrimas
de todos os que choravam-lhe incendiavam a alma — chuva de estrelas cadentes na
noite negra e funda.
As paredes não lhe eram diques: a sua percepção
ia até ao fundo das casas buscar os que sofriam e até ao fundo das almas tirar para luz a miséria,
o vício e o crime. Ao galope passavam por dentro do seu crânio em imagens mordidas de
delírio, as velhas sequiosas de amor, que com os dedos
descarnados e febris agatanhavam para si
restos de mocidade. Vi as que passavam, de
olhares luzentes, dolorosas e escarnecidas e
na sua alma, de aguçados os nervos, sentia
como elas a raiva de querer viver, de ainda ser moças, e amargura das rugas e
do escárnio dos que têm vinte anos. Ao galope passava a maré dos grotescos,
daqueles que escondem uma doença, que uma ideia risível devasta os impotentes,
os que não têm a piedade
de ninguém, atirados para a vida e calcados pela Vida e num tropel de raiva, os
ambiciosos, que caminham rentes às paredes,
de unhas cravadas na sua quimera, botas
rotas, pés frios e feridos, o cérebro em brasa…
E assim as casas,
as paredes e as coisas, de ouvir tanto
grito, de se sentirem palpadas por mãos febris e cravadas por unhas de ambiciosos, tomavam
naquela noite formas de delírio e tinham vozes,
embebidas de ambição, de tédio, de dor ou de ferocidade de
sonhar. Era um murmúrio indefinido, um ambiente nervoso que a sua sensibilidade recolhia e traduzia depois em ideias duma amargura tecida de rancor. Já ele no seu covil tinha
tido a mesma emoção de agora a primeira vez que ali
dormira. Pusera-se a pensar ao ver-se frio, o coração premido e vontade
de chorar não sabia porquê, como se uma parte do
seu ser tivesse sido aniquilada ou uma escarlate quimera fosse para sempre
perdida: Que de desgraçados de tanto sonhar puseram em brasa estas paredes negras? Que de ambições aqui nascidas não foram despedaçadas e aí estão
mortas pelos cantos da casa?... Estas paredes, que estremeceram com a dor ou se aqueceram com
o sonho de outros, não serão para mim agressivas, por ser muito diferente o
quimérico ideal que eu construo?... E havia
vozes, abortos de ideias, fetos de concepções invisíveis e suspensas pelo
tecto, como teias de aranha caídas e abandonadas...
(continua)
Raul Brandão, O
Micróbio,
n.º 30, 7 de Fevereiro de 1895, pp. 38-39
0 Comentários