S. Nicolau e Krampus |
Apesar
da despedida anunciada no ano anterior, o último pregão do século XIX seria
também o último escrito por Bráulio Caldas. Mas fora preciso convencer o
poeta de Vizela a voltar a pegar na pena e na inspiração para dar o dito por
não dito e voltar a escrever o bando de S. Nicolau. Quem conta a história é
Domingos Ribeiro da Silva numa conferência que proferiu no dia 13 de Dezembro
de 1920, no Teatro D. Afonso Henriques:
Estamos em
1900, no fim do século 19, no fim: do grande século, no século das luzes, no
fim do século das grandes conquistas na senda do progresso e do pensamento. Um
cantor condigno era preciso para o bando escolástico. Onde encontrá-lo? Não era
fácil. O Bráulio despedira-se… Mas que importa, se a sua alma sempre grande,
está pronta a sacrifícios pelos rapazes?
O Sampaio, o
Pádua, o José Roriz e outros vão ao cenáculo de Vizela. O Caldas atende-os mais
uma vez.
O texto do pregão de 1900 é uma homenagem aos velhos e aos novos entusiastas das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau. É, novamente, antecedido por um poeta de despedida do poeta, desta vez “para sempre”. Para quem os lê, fica a ideia de que estes versos serão obra de um ancião, que se vai despedindo da vida, e não de um homem que ainda não chegara aos quarenta anos.
ÚLTIMA DESPEDIDA
PARA SEMPRE
Vá lá mais uma vez... ficando reprovado,
Repito mais
um ano a esquálida sebenta
Assim me
aconteceu, no tempo assinalado...
Da Lusa,
que, no Quinto... uns certos afugenta...
Meteu-me
nesta festa o demo do Sampaio!
E, para
nunca mais, nem sei que mais observe...
Aos novos
recorrei, versos e flores de Maio,
Os meus vão
desfolhar — são rosas de Malherbe.
Os novos tem
mais vida os versos mais encanto
Inspirações
da Aurora e flores da Primavera,
Eu... vivo já no
Outono — é riso feito pranto!
Castelo
arruinado onde vegeta a hera!
Se depois de
eu morrer lembrar-vos a maçada
Que seis
anos me deste e que não pouco vale
Levai-me uma
saudade, ao menos, desfolhada,
Meu Espírito
evocai... porque... talvez vos fale.
BANDO
ESCOLÁSTICO
O S. NICOLAU EM GUIMARÃES
Recitado em 5 de Dezembro de
1900
Pelo estudante vimaranense
aposentado em filosofia da cábula
ANTÓNIO DE PÁDUA DA SILVA
CARDOSO
S.
Majestade Celeste o S. Nicolau, atendendo a que é fim de século IXX [sic], em
que há perdões para culpas e recompensas para virtudes, e que já decorreram
seis anos desde que ressuscitadas foram as antiquíssimas e arqueológicas festas
de culto
profano que a nobre e afamada
Academia Vimaranense de Filosofia-Lógica e Latim presta
ao meu nome, julgando-me um pândego de outras eras, e, Considerando que me
lisonjeia essa antiquíssima e original tradição da velha Araduca...
Mando,
que, pelo meu secretário e intérprete deste ano António Pádua, sejam louvados
os seguintes meus fiéis estudantes de outrora...
Os
velhos entusiastas: P. Veiga, Nicolau Felgueiras, Domingos do Menino de Ouro,
António Carneiro, Abreu Vieira, António Chaves; Agostinho Ferra, P. Garcia,
José de Freitas Carneiro, Joaquim Martins, João Barbosa, João Amaral, P. da Bornaria,
P. Lima, P. Monteiro, P. Augusto da Assunção Costa, Jacinto Dias, dr. Andrade e
P. Casimiro.
Os
novos entusiastas: Albano Belino, Pedro Lobo, dr. António Basto, Alberto
Margaride, José Pina, Ferreira da Paz, Domingos Rato, Jerónimo Rato, Fernando Lindoso,
Jerónimo Sampaio, José Roriz, Rocha Lima, António Guimarães, João Campos,
Francisco Queirós, Florêncio Lage, Acácio Oliveira, Álvaro Oliveira, António
Infante, correspondente do Janeiro,
toda a ilustrada imprensa de Guimarães e todos os mais cujos nomes presentes
não tenho;
Perdoando
as culpas, recompenso o mérito e a virtude da patriótica função.
Palácio
Celeste, 5 de Dezembro de 1900.
Século
da Luz... adeus... Poente... o sol fenece!..
Século
Vinte surge... Aurora, resplandece...
Nasças
tu, muito embora, em negra terça-feira
Hás-de
ser o melhor... a era mais fagueira...
Na
Paz e na Verdade, o século mais facundo!
O
mais santo e feliz desde que o mundo é mundo!
A
guerra! assassinato e roubo colectivos
Que
a própria lei consagra... a História faz altivos.
Um
dia há-de acabar... Nações — à penitência...
A
luz do Evangelho!... ao Credo da ciência!...
Os
Lesseps rasgarão os istmos das fronteiras,
O
amor da Humanidade arvorará bandeiras,
Filhos
de Carlos IX... abaixo o arcabuz,
A
espada há-de partir-se humilde aos pés da Cruz-
.
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Kruger
sintetiza a grande Humanidade
No
amor a independência, à Pátria, à Liberdade
A
velhíssima lenda espírita… enxameia!
Já
fala dela Homero, o Tirésias na Odisseia.
E
Virgílio na Eneida, a Bíblia em Israel,
Já
Saul evocara a sombra a Samuel.
Almas
do outro mundo... Ciências positivas...
E
golpes de escapelo... em forças redivivas...
Silêncio
que é melindre arrepiar as crenças,
Que
enredam corações em espirais imensas…
E
não é dado a nós os leigos nesta léria.
Investigar
além das raias da matéria.
Dos
astros para além... se lá é o outro mundo,
A
Deus é que pertence assunto tão profundo.
.
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Se
fosse verdadeiro o tal Espiritismo
Que
saudação febril! que poemas de lirismo
Não
haveria hoje ao ver junto de nós
As
almas do outro mundo!... os mortos!... os avós
Desta
festa senil, que, em todo o mundo, é virgem
Dizendo-nos
então qual foi a sua origem.
Padres
— Caldas — Abreu — Sargenta e o grande Mico
Espíritos
gentis do Nicolau de outrora
Que
riam, como ri no mês de Maio a Aurora
E
davam à cidade, em gélido Dezembro
Risos
de sol aos mil...
Com que saudade
os lembro!
A
mesa pé de galo, o carro destas flores,
Medium seria então, num tálamo de
amores,
A
mais nobre e gentil das damas da cidade
Que
nesse tempo vira a flor da mocidade.
Foi
proibido o jogo... e joga-se... decerto...
No
silêncio da noite esconso... e no deserto...
Afinal
que fazer?...
É um jogo a
própria vida
No
amor, na fortuna a Sorte é apetecida.
Loucura
é proibir com ordem tão ufana
Um
vício inerente à natureza humana.
O
jogo é muito antigo é de era já primeva
Já
mesmo o Pai Adão jogou com a Mãe Eva
Melhor
é reformar o Código Penal,
Pagar
contribuição; legalizar o Mal.
Tricanas...
vosso amor é o S. Nicolauzinho,
O
santo mais brejeiro, em Guimarães, no Minho,
O
próprio S. João fica a perder de vista,
Nicolau
é mais galo! é mais altiva crista!
Nascendo
no outono, e próximo do inverno,
Dá-nos
maior calor e tem amor mais terno.
Se
ele agora soubesse o que por cá retumba
Descia
lá do céu, vinha tocar zabumba
Formosas,
louvai sempre a festa peregrina
Dai
palmas, deitai flores à capa e à batina.
Há
memórias que têm na História um monumento
Foi
grandiosa a festa! altivo o pensamento!
Rasgara-se
o Azul da Imortalidade
—
A alma de Sarmento, em prantos de saudade,
Mandou
cá, para a terra, e na consagração
Bênçãos e flores
de alma à grande comissão
Que
soube relembrar em hinos de louvor
O
seu mais querido filho, o seu maior valor.
Senhoras
— perdoai, é pobre o pensamento!
—
Houve eclipse total do Sol, no
firmamento.
Foi
este ano o assombro! a ciência teve a glória!
Mas
foi o vosso olhar a causa da vitória!
O
Sol tem sempre horror aos astros seus rivais!...
Não
foi a Lua a sombra. É vós que brilhais mais
A
História vos saúda em ovação real,
Anjos
de Guimarães, filhas de Portugal!
*
Companheiros
do Estudo... Estrondo e da Pilhéria
Atendei-me
a final…
Espírito e Matéria
Andam
agora, em luta, a ver, se enfim, termina
A
bombaria infrene, a guerra mais mofina
Que
à nevrose se faz, à histeria... à idade,
Que
desculpar não pode a louca mocidade!
Mas
fim de século, agora, enfim tenham paciência
Hão-de
as peles zurrar com toda a violência!
Cautela
e atendei às regras musicais
Da
orquestra do Zé Pereira e não toqueis de mais..,
A
música anda em três... Regras que já vos conto:
Melodia,
harmonia e mais o contraponto.
Para
bem se executar — três coisas, e aposto:
A
sensibilidade, a inteligência e o gosto.
E
claves são as três de lá, de sol e dó,
Vozes
são três também, três os compassos só.
Acidentes,
bemol, bequadro e sustenido,
Instrumentos
são três — e fique definido:
Há
de sopro, de corda e há de percussão,
É destes que
se faz a mais real função.
Meyerbeer, Mozart, Mendelssohn,
Puccini
Schubert, Massenet,
Beethoven, Rossini
E
Chopin a chorar!... e Offenbach a rir,
Já
ficam muito aquém... não podem resistir
No
arranjo orquestral, no sublime aparato
À
obra genial do maestrino Rato
Wagner
é o autor da música científica
Mas
o nosso Zé Pereira é música analítica,
Que
faz todos os tons, todos os andamentos
O
prestissimo, o presto, o largo
e os mais lentos.
Vá...
uma... duas... três… Andante e muito forte!
—
Um hino festival que ponha medo à Morte!
Bráulio Caldas
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