No refluxo da maré cheia, este é
o tempo da vazante, o tempo de percebermos o que muda e o que permanece depois de
um ano que, para Guimarães, foi pródigo e virtuoso. É certo que ainda não
ganhámos suficiente distância para compreendermos a dimensão da mudança, já é
claro que Guimarães reforçou e disseminou a sua imagem de cidade amiga da
cultura, do património, da História e dos cidadãos.
Neste exercício que se vai
fazendo à medida que se vai caminhando, tem sido curioso rever aquilo que
escrevemos no tempo das incertezas, quando percebíamos que caminhávamos para o
desastre que antevíamos e que, felizmente, soubemos evitar:
“Alguém que aterre repentinamente em Guimarães é capaz de
demorar a perceber a dimensão cultural desta cidade, tendendo a subestimá-la.
Nestes últimos dois anos, sobram-nos os exemplos dessa atitude. A pretexto da
Capital Europeia da Cultura que aí vem, não faltou quem se atribuísse a si
próprio a nobre missão de evangelização cultural deste território de bárbaros,
encarregando-se de trazer as luzes da civilização aos brutos que viam em nós. E
logo concluíram que, além de brutos, seríamos difíceis (“como é difícil
trabalhar com esta gente”, iam murmurando por aí) e mal agradecidos, já que não
nos ajoelhávamos perante a imensidão da sua sabedoria, nem elevávamos ao céu
cânticos de congratulação e de reconhecimento pelo seu esforço inglório para
nos ensinarem aquilo já sabíamos. Se há marca distintiva de Guimarães, é a que
resulta da dimensão e da consistência da sua vida cultural. Que não vai começar
amanhã, nem começou ontem. Esta é a terra de Martins Sarmento, de Alberto
Sampaio, de João de Meira, de Raul Brandão, de Mário Cardoso, de Alberto Vieira
Braga, de Santos Simões, de José de Guimarães. Não foi por acaso que Guimarães
ganhou o direito ao título de Património Mundial, nem foi por obra dos novos
evangelizadores que esta cidade adquiriu o privilégio de ser Capital Europeia
da Cultura. Aquelas são distinções que alcançou por aquilo que tem sido desde o
último quartel do século XIX: uma cidade que valoriza o seu património e que
aposta na cultura.”
Se a Capital Europeia da Cultura
foi o que foi, deve muito, sem dúvida, aos que a programaram e executaram, mas
também não foi pequeno o contributo dos seus cidadãos, organizados ou não nas
associações culturais da cidade, que não esconderam o seu desassossego quando a
FCG lhes voltava as costas e funcionava em circuito fechado e que depois,
quando sentiram que faziam parte,
deram uso ao espírito gregário com que se costumam mobilizar para as causas da
sua cidade. Sem a determinação dos cidadãos, dificilmente estaríamos hoje a
olhar para 2012 como um dos capítulos mais brilhantes da história de Guimarães,
um acontecimento que movimentou a cidade e a projectou para uma visibilidade
para que se preparou ao longo de décadas, mas que só agora alcançou plenamente.
Temos, portanto, boas razões para
estarmos satisfeitos. Mas não estamos contentinhos.
Porque, se a Capital Europeia da Cultura se cumpriu, nem todas as suas promessas
se cumpriram. E se temos razões para olharmos com alegria para o que foi, temos
também motivos para encarar com preocupação o que está para vir, num horizonte de
crise em que se percebe que a cultura é encarada como um vício. E quem não tem
dinheiro…
Parece claro que 2012 deixou por
cumprir o seu objectivo programático de requalificar as instituições culturais
vimaranenses. O modelo de “envolvimento” que foi aplicado, sem sequer ter sido
objecto de entendimento prévio, ainda no tempo primeiro conselho de
administração da FCG, revelou-se um equívoco inconsequente. As associações foram
colocadas em dois patamares: as ditas de “primeira linha” que teriam um papel determinante
no processo de programação (seriam “braços armados” dos programadores); as outras,
seriam beneficiadas por uma dotação orçamental, a gerir em consórcio por três associações.
A realidade da aplicação deste modelo prejudicou, manifestamente, as
associações a quem foi prometida uma maior participação, que não se concretizou.
E, no fim de contas, no seu conjunto, em 2013 as associações culturais de
Guimarães não estão numa situação melhor do que estavam em 2011.
Até porque se aproximam eleições
autárquicas, este pode ser também um tempo para uma reflexão partilhada acerca
dos papéis a desempenhar pelos diferentes agentes culturais vimaranenses, no
sentido de potenciar, no respeito da sua diversidade e independência, a
convergência dos seus recursos e competências, erguendo as paredes de uma casa
comum e derrubando os muros que, tantas vezes, os têm separado.
A actividade cultural em
Guimarães não foi inventada por nenhum dos seus actuais protagonistas. É o produto
acumulado de contributos dados ao longo muitas décadas por uma multidão de
homens e mulheres dedicados a causas comuns. Gente que tem prestado os seus
serviços nas associações e na autarquia e que, ao longo do tempo, se tem
renovado e se continuará a renovar. O que nos dá uma certeza: se ninguém é
insubstituível, todos fazemos falta.
[Texto publicado em O Povo de Guimarães de 15 de Fevereiro de 2013]
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