No seu número de 197, de Novembro de 1909, a revista Ilustração Portuguesa publicou um texto (provavelmente escrito por Alfredo Guimarães) onde se fala da chinela de Guimarães, de verniz preto, bordada a retrós vermelho e azul, que ia sendo conhecida, erradamente, com a designação de "chinela de Braga". Num tempo, como o de hoje, de redescoberta de velhos objectos da nossa tradição artesanal, pode ser que alguém tenha uma "ideia de negócio" que permita recuperar a chinelinha bordada que antigamente constituía o calçado domingueiro das moçoilas da nossa terra. Aqui fica o texto da Ilustração Portuguesa, bem como reproduções das fotografias que o acompanhavam.
A chinela de Guimarães
Um elemento do “costume” regional da mulher do norte.
Um elemento do “costume” regional da mulher do norte.
Quase um palmo de verniz em pantufa de lavradeira.
Duas silvas de retrós, em vermelho e azul, ao gosto do operário local.
Bom adorno para moças, em dia de festa; mau arranjo para garotos, em dias de pancada.
Vamos: uma chinela bonita.
Uma?
Não. Mil, milhares de dúzias, toda
uma indústria agitada e produtora,
que sustenta centenas de homens,
enriquece os sapateiros
capitalistas, e ocupa, tas, e ocupa, quase absolutamente, uma das maiores artérias
da populosa cidade de Guimarães.
Não tem história esta indústria.
Nunca foi mais perfeita nem mais rude. É afinal, como quase todas as obras, de fabrico manual e popular.
A chinela bordada de Guimarães,
diga-se, está como as mãos de nossos avós a deram a lume.
"Mãos à obra: um operário cosendo a solaria" |
Todavia o modelo da chinela
vimaranense acusa alguma coisa de singular. A tamanquinha do inverno — e no campo de uso anual no trabalho — é
mais antiga e geralmente mais procurada. Mas dado, mesmo, que a chinela seja filha da tamanca; dando de barato que o modelo do soco da
mulher do norte orientasse o modelo da chinelinha bordada dos arraiais, digam:
como se intercalou nos usos populares de Portugal semelhante modelo de calçado?
Conhecendo
o leitor desta noticia todos os tipos industriais que desde os inícios do século
XII se desenvolveram e evolucionaram entre as populações regionais (em verdade
todas diferentes por motivos de ascendência diversa), não duvidará que até à
segunda metade do século XVI se ignorava, neste país, qualquer modelo de
calçado que pudesse originar, ainda que por ocasional fantasia obreira, o tipo
do calçado popular das províncias do Minho, Douro, Trás-os-Montes, Beiras Alta
e Baixa. Sobre isso, penso, ninguém duvidará.
De onde chegou, pois, semelhante modelo de calçado?
Quer parecer ao autor desta notícia
que se trata dum modelo gentio. Anteriormente ao fabrico do calçado indiano,
que se expõe no notável museu da Sociedade de Geografia de Lisboa, nada aparece,
sobre este assunto, com segura palavra de propriedade. O autor, porém, tem
apenas a particular vaidade de indicar. Não contestará uma opinião que de hoje
para amanhã, aparecendo, possa tornar-se convincente.
Mas será, realmente, um modelo
gentio, transportado por caravelas de grande notícia, aquele tipo de obra
popular de que tratámos?
Será?...
Não será?...
Ò inolvidável favor das coisas
que se revelam (útil e criado:) opera. Somos todo teu.
Como hoje se fabrica chinela, é
coisa fácil de explicar.
Para todo o revestimento de cabedais
existe forma própria : com sucinta utilidade; de todo o modo prática,
no ofício.
Em torno da forma modela-se
primariamente a gáspea;
mede-se até ao calcanhar; assenta-se, em seguida; e enforma-se.
Estamos a ver um sapateiro no ofício,
ordinariamente, da sua escolha: e vemo-lo ajustar a palmilha (cravada duas vezes na sola do pé); debruar, comprimidamente,
a vira delgada; ajustar os forros e brunir, ao fim, o debrum
da solaria.
— Quanto ganha este homem? — perguntar-se-á.
Trezentos a quatrocentos réis diários, fabricando
dois pares de chinelas bordadas, que são as de mais difícil manufactura.
Prova-se com isto que os sapateiros ou chineleiros de Guimarães nunca foram
exigentes.
Boníssimos, até aí!
"Na oficina: uma tricana escolhendo do seu par de chinelas" |
E a cravadeira?
Cabe este nome à mulherzinha que
apesponta à máquina o debrum de carneira, a biqueira de polimento, e o desenho
(em vivo retrós azul e encarnado) das silvas do uso.
A simples chinela de mulher
casada, distinta dos costumes moços como todos os adornos nessa
terra socialmente convencional e conservadora, teve sempre um desenho simples,
correcto e branco, susceptivelmente moderado. Mulher minhota que casa (como em
geral toda a mulher dos povos rurais dentro e além das Beiras) fica tendo dois,
exclusivamente dois, objectos de adorno: a ourivesaria abundante, reunindo
crucifixos, cordões, borboletas e a meada das contas grossas; e, depois, o
lenço amarelo de froco, que, por acaso, é ainda garrido.
Da chinela de retrós policromo
leva o seu último par à “porta da igreja” — quer dizer, ao dia do casamento. Aí
a mulher dos arredores, e mesmo a mulher pobre das fábricas, inicia o
expediente de cercear ao gasto do seu adorno, diminuindo ou eliminando à compra
de objectos que não possuem o valor duma utilidade contínua e razoável.
Borda a cravadeira, pois, para a rapariga solteira, o primor das silvas garridas. Mulher nova, namorada entende-se: é mulher que agrada ou
gosta de agradar. Porque a chinela bordada, logicamente, não é um objecto útil e barato. Inutiliza-se com maior facilidade
que qualquer outro objecto. Pouco depois de comprada desfia,
desbrilha, amolga e desenfeita-se radicalmente, com a facilidade mais
comprometedora que pode imaginar-se.
Todavia a indústria prospera,
consolidada e afoita. A álea de casario que fica sobre o velho tanque dos passarinhos, em Guimarães, e ocupa as ruas de Alcobaça, do Comércio,
de S. Paio ou Tulha, toma-se com as oficinas do calçado chamado de feira, em cujo grupo industrial entra a chinela bordada a
retrós.
Note-se: a chinela bordada a
cores é inovação de há pouco mais de vinte anos. Anteriormente o mesmo bordado,
facturado à mão por gaspeadeiras locais, era simplesmente branco. E ainda hoje
o seu arranjo é tão rude e tão arcaico como o já era há vinte anos, há cem anos
mesmo.
De Guimarães exportam os industriais grande número de chinelas,
quase a totalidade do seu fabrico, para abastecer os mercados semanais das
províncias do norte. E, mais ainda do que os mercados de semana, as feiras anuais
de Aveiro, Famalicão, Viseu, Penafiel e Fafe esgotam grande número de
exemplares desse objecto lustroso e decorado.
Foi talvez devido à expedição contínua, sem uma venda local digna
de chamar-se compensadora, que a chinela borda da de Guimarães veio a chamar-se
um dia, pelo uso e critério públicos, chinela
de Braga. Têm-no dito escritores de crédito. Afirma-o, com a mesma ignorância,
o povo indígena. Mas é somente uma, a chinela bordada: fabrica-se em Guimarães;
lá nasceu e floresce, industrialmente falando.
De modo que isto faz acreditar que a manufactura das chinelas, e mesmo de qualquer outro género de calçado, produz uma
receita estupenda; é uma das grandes fontes de trabalho industrial do concelho
de Guimarães. Assim poderia ser; mas não é. A indústria de calçado da trabalhadora cidade do norte é hoje o
que sempre foi — uma indústria sem o desenvolvimento comercial necessário para
atingir grandes rendimentos. Está na mesma situação das indústrias de louça e curtumes.
Todavia com menos probabilidade de se apagar.
Enfim, como modelo oriental (como
nos parece) ou como modelo de qualquer outra origem, a chinela bordada que aqui vemos
reproduzida é um elemento do costume
regional do Minho.
"No mercado de Guimarães: a tenda do calçado local" |
Tricana que se entrega à
serventia doméstica ou rapariga de fábrica, aos domingos, no mercado, na missa
do meio-dia, nas procissões, ou ainda em passeio de namorada, calçam sob o
debrum de pele do seu avental de vidrilhos e veludilho a pantufa de verniz lustroso, bordada em retrós azul e encarnado, que ergue em bico (à semelhança do nariz impertinente
de certas mulheres) a sua biqueira de polimento francês.
Nas festividades anuais da Páscoa
e do Natal, requerida como elemento de imprescindível luxo, a chinela de
estreia rompe do pé pesado da rapariga do Minho: cingindo a meia rendada de chrochet, nos pés da rapariga do campo, e a meia de malha
quando ao uso da tricana da cidade. E levadas pelos caminhos em dias de romagem
ou rifa em lugarejo dos arredores, levantando a poeira das estradas, é ainda
esta chinela bordada que, com a policromia do seu desenho berrante, salta em
pleno arraial, deixando
ver meio pé de meia bordada, quando os rapazes do campo e o homem do clarinete
volteiam para o azul das tardes de sol o seu motivo engraçado, nos três tempos
da chula e do verde gaio!
Parecerá a alguém que essas
classes pobres da província passam uma vida triste, limitadas, como estão, ao
parco rendimento da sua féria
semanal. Mas é ilusão. Por exemplo, esses sapateiros de Guimarães são uma classe
de gente divertida com o mais
curioso feitio provinciano; tão curioso que
são devotos das confrarias e
simultaneamente das serenatas e do jogo da bola.
Ao sábado à noite, quando o sino
da Oliveira badala às almas
e lá em cima o clarim do quartel chama “a recolher”, a sapateirada dos socos e
do chapéu “à bolina” sai para a rua com a sua serenata sentimental, acompanhada
da guitarra velha dos pobres e da viola de fortes bordões sonoros. Ao postigo das raparigas de fábrica ou à
portada das criadas de servir, pela noite velha, vai um ensaio de fado menor,
rigoso, a carácter.
"Quem dá o pão, dá o ensino" |
Nas tardes de sol, pelo S. Martinho,
nas vendas dos arredores há jogo da bola, a cinco réis o mico. A sapateirada concorre, quase absorve o número dos sportsmen.
Nas tocadas a enterro rico, quando
as velas dão os quatro vinténs por cabeça, a sapateirada é sempre o maior número. Embrulham a opa ou o hábito
num lenço de chita, passam as mãos na água do breu e vão ao Terço, ao Cordão,
à Senhora da
Guia, a S. Domingos.
E então pelas últimas semanas da
quaresma, com a lista do peditório, invadem todas as casas a recolher para a via-sacra ou para um judas.
Os garotos dizem que para o arroz de polvo. Mas dado que seja para o arroz ou para pagar ao
minorista que recita os mistérios,
é sem dúvida para um divertimento que encanta esse homem simultaneamente
devoto, nocturno, trabalhador e jogador do mico.
Cada um com seu feitio.
(clichés de Gaspar Ferreira)
Illustração Portuguesa, n.º 197,
29 de Novembro de 1909, pp. 697-700
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Obrigada Virginie Vila.