Em 1537, Guimarães foi dada pelo Duque de Bragança ao infante D. Duarte,
a título de dote pelo seu casamento com Isabel de Bragança. Era a essa doação
que se referia o infante D. Luís, quando exclamou, ao contemplar a vila de uma
janela do Paço dos Duques: - Se quem te deu te vira, não te
dera.
É assim Guimarães: uma cidade que encanta os que a vêem. António Lobo de
Carvalho alcandorou-a à condição de “pátria do amor”. Torga, que tinha do Minho
uma imagem pouco gentil, fixou o olhar nas suas “varandas torneadas onde ainda
hoje apetece namorar”. Saramago diria de Guimarães que é um bom sítio para
iniciar namoros. Esta é uma cidade que se deixa namorar.
A história é um dos elementos matriciais da constituição vimaranense. Não
haverá muitos lugares onde um facto histórico com muitos séculos seja capaz de
atear paixões inflamadas. Guimarães é um desses lugares. Aqui, o rasto do
passado está por toda a parte. Nas pedras, nos documentos, nas ruas e praças,
nos nomes das lojas, dos restaurantes, no estádio de futebol.
Guimarães nasceu em meados do século X, à sombra do mosteiro mandado
erigir pela Condessa Mumadona Dias, senhora das terras de Vimaranes, e do
castelo que então se fez levantar para protecção dos seus frades e freiras. No
final do século seguinte, faria parte do dote que o cavaleiro francês D.
Henrique recebeu pelo seu casamento com D. Teresa, filha natural de Afonso VI
de Leão e Castela. Seria neste burgo que Henrique e Teresa se viriam instalar,
para daqui governarem o Condado Portucalense. Aquando do nascimento de Afonso
Henriques, no final da primeira década do século XII, já germinavam entre a
nobreza de Entre-Douro-e-Minho aspirações autonomistas que, anos mais tarde,
viriam a ser protagonizadas por aquele que, tendo nascido para ser conde, se
fez rei.
Ao contrário do que pode parecer, a ideia de Berço da Nacionalidade não
deriva do local de nascimento de Afonso Henriques, que permanece incerto. Nesta
matéria, de firme apenas existe a tradição, que os documentos históricos não
validam, nem invalidam, que dá Afonso Henriques como natural desta terra.
Guimarães invoca a condição de berço de Portugal por ter sido daqui que
Portugal deu os primeiros passos como país. Foi a 24 de Junho de 1128, na
Batalha de S. Mamede, naquela que o pintor Acácio Lino retrataria como “a
primeira tarde portuguesa”.
A evocação de S. Mamede e do seu protagonista, Afonso Henriques, é
omnipresente em Guimarães. Essa memória é particularmente evidente no outeiro
que na Idade Média se designava de Monte Latito e que no Estado Novo se
rebaptizou como Colina Sagrada, onde está implantado o Castelo e a pequena
igreja onde uma tradição cronologicamente pouco plausível diz ter sido
baptizado Afonso Henriques. E lá está também o próprio rei, com o corpo e o
rosto que Soares dos Reis lhe inventou e que se tornou no retrato oficial do
rei fundador.
Em Guimarães persiste uma forte consciência do valor da herança
patrimonial, que alguns julgam desmentida por um facto histórico mal contado.
Estava-se no rescaldo da Guerra Civil. Vencidos definitivamente os miguelistas,
os liberais assumiram a governação do país. Em 1836, Guimarães era governada
por uma Sociedade Patriótica, à qual foi apresentada uma proposta de demolição
do Castelo, por ter sido uma “cadeia bárbara que serviu no tempo da usurpação”.
Diz-se recorrentemente que a aprovação de tal proposta teria falhado pela
margem mínima de um voto. Todavia, o resultado foi bem diverso: de um total de
19 votantes, apenas quatro subscreveram a intenção de demolição. Prevaleceu o
argumento de que o Castelo era um monumento histórico que deveria ser
preservado. Foi esta mesma consciência patrimonial que predominou em Guimarães
ao longo do tempo e que permitiu que, no essencial, o património arquitectónico
do Centro Histórico fosse preservado, criando-se as condições que permitiram a
sua consagração pela UNESCO, no corolário de um processo de requalificação que
se tornou num caso de estudo internacional, por ter envolvido o esforço de
preservar o edificado sem cair na tentação de o musealizar, assegurando as
condições para que o espaço requalificado continuasse a ser habitado pelos seus
moradores de sempre. Este processo contou com muitos obreiros e tem a
assinatura do arquitecto Fernando Távora.
À requalificação do Centro Histórico seguiu-se, ainda há pouco, a
intervenção na zona exterior à antiga muralha. Por estes dias, Guimarães acaba
de sair do mais extenso processo de obras de que foi objecto em muitos séculos,
abrangendo um amplo espaço nobre do centro urbano, à volta do Toural, o
verdadeiro coração da cidade. Findos os trabalhos, que foram acompanhados por
discussões apaixonadas, a cidade recuperou a sua “sala de receber”, agora com
uma imagem de contemporaneidade que soube respeitar as marcas do passado.
Um dos elementos mais marcantes do modo de ser vimaranense resulta do
apego dos cidadãos à sua cidade. Para o demonstrar, atentemos no exemplo de
Joaquim Novais Teixeira, jornalista, crítico de cinema e cidadão do mundo
nascido em Guimarães em 1899, cuja memória será evocada pela Capital Europeia
da Cultura. Das mais de sete décadas que viveu, apenas os primeiros dezassete anos
foram passados em Guimarães. Não obstante, Novais Teixeira alimentou
permanentemente um sentimento de afinidade e de pertença a Guimarães, mesmo no
tempo em que a ditadura o proibia de regressar a Portugal. Aos que lhe
perguntavam se era português, costumava responder: “Não, não sou português, sou mais do que isso, sou de
Guimarães! Com efeito, sou de uma pátria pequenina e sólida chamada Guimarães”.
Esse sentimento, a que Jorge Sampaio chamou de “patriotismo de cidade”, constantemente
replicado em manifestações de afecto à cidade, é uma das marcas mais fortes da
identidade local.
Guimarães é uma terra que na política alinha à esquerda (em 11 eleitos
na vereação municipal, apenas três representam a direita). Não obstante, os
seus cidadãos são entranhadamente conservadores no que respeita à defesa do seu
património e das suas tradições. Só assim se explica a sobrevivência de
festividades populares como a Senhora da Conceição e a Santa Luzia, em que a
tradição manda que os namorados troquem prendas com o seu quê de sugestivo: as
raparigas oferecem as “passarinhas”, recebendo dos rapazes os “sardões”, num
jogo aparentemente inocente, mas carregado de malícia (as “passarinhas” e os
“sardões” são moldados em pasta de farinha e recobertos de açúcar). Ou como as
Nicolinas, as festas dos estudantes de Guimarães, que entre finais de Novembro
e os primeiros dias de Dezembro, enchem a cidade com uma irreverência saudável
e algo subversiva.
É essa Guimarães que está retratada em muitos trechos da obra de Camilo
Castelo Branco e em páginas magistrais do escritor da Casa do Alto, em
Nespereira, Raul Brandão. É a Guimarães profunda, embora não nomeada, que
aparece nas suas obras fundamentais Húmus e A Farsa, a cidade
carregada de história, cujas “lajes estão gastas de um lado pelos passos dos
vivos, do outro pelo contacto dos mortos”, onde “noite, cerração compacta,
névoa e granito formam um todo homogéneo para construírem um imenso e
esfarrapado burgo de pedra e sonho”.
Não foi por acaso que Guimarães foi indicada para Capital Europeia da
Cultura no ano que agora começa. Esta designação surge como consequência
natural de uma prática cultural profundamente enraizada. Esta cidade deu ao
mundo notáveis homens de letras como o célebre escritor e jurista quinhentista
Agostinho Barbosa ou como o memorável, se bem que hoje quase esquecido,
pré-bocagiano António Lobo de Carvalho, poeta fescenino e de língua farpada. Camilo
Castelo Branco chamou-lhe “a faustosa cidade que teve academia de sábios, que
rivalizam com as mais graduadas, em seu tempo, na capital”.
O dinamismo cultural de Guimarães sofreu um forte impulso no último
quartel do século XIX, por obra dos fundadores da Sociedade Martins Sarmento,
instituição que completa 130 anos em 2012 e que nasceu como homenagem ao
arqueólogo que desenterrou a Citânia de Briteiros e que funcionou como figura
tutelar de toda uma geração de homens ilustres, da qual sobressaiu o
historiador Alberto Sampaio. Luís de Magalhães referiu-se a essa geração de
eruditos como a “Academia vimaranense”, num texto em que afirmava que “se
o nosso país fosse atacado de veleidades regionalistas — Guimarães tinha o
direito de reivindicar para si as honras de um centro superiormente
caracterizado e individualizado no meio intelectual português”.
Hoje, Guimarães continua a destacar-se pelo seu dinamismo cultural, em parte
fruto da acção do Município, em parte fruto do trabalho das suas instituições
culturais e dos seus cidadãos.
É esta cidade,
feita de granito e de memórias, pequena na dimensão, cosmopolita na
mundividência, que agora vai responder ao desafio de se assumir, por um ano,
como um dos faróis culturais da Europa.
[Texto publicado no Jornal de Letras de 11 de Janeiro de 2012]
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