Joaquim Novais Teixeira Fonte: Tempo Contado |
A figura de Joaquim Novais Teixeira marcou profundamente aqueles que com ele conviveram. Para muitos, mesmo na terra que o viu nascer, continua quase esquecido. Na última edição do Jornal de Letras, o escritor J. Rentes de Carvalho, que conviveu intimamente com Novais Teixeira, publicou um testemunho sobre "o mais dedicado dos mestres", que vale a pena ser lido. Aqui fica, apanhado no blogue do escritor, Tempo Contado:
Um que deixou marca
Tirante a família, na minha longa vida
são bastantes os que recordo, poucos, meia dúzia se tanto, os que até agora
deixaram marca perene. Tivesse eu de fazer deles uma lista, Joaquim Novais
Teixeira (1899-1972) ocuparia o primeiro lugar. Trinta anos nos separavam e,
contudo, mau grado o fosso entre as suas extraordinárias vivências e a
ingenuidade do rapaz que começava na vida, logo no primeiro encontro criámos um
genuíno laço de amizade.
Foi para mim o mais dedicado dos
mestres, guiando, explicando, aconselhando, avisando, mas sempre cuidadoso em
esconder a cátedra e o seu saber, deixando-me na ilusão de que quase aprendia
por mim próprio. Ensinou-me mais de Literatura do que aprenderia na
universidade; por sua mão fiz como que um curso superior de Cinema;
introduziu-me em meios e providenciou contactos que transtornariam a minha
visão da Política e da História, e fariam envergonhar da tosca singeleza das
minhas convicções.
Foi honra o convidar-me
para a intimidade familiar, nomeando-me sobrinho, honra maior fazer-me seu
confidente. Porque era
generoso e tinha gosto em partilhar amizades, mais de uma vez comi a fabada asturiana que mandava cozinhar quando o seu amigo Luís Buñuel
vinha de visita. Comi, mas confesso, assustado com a fama do homem de quem
conhecia os filmes, e maravilhado de me ver em tal companhia.
- Este é o Gabo.
Como ia eu saber que,
tendo lido uns textos do rapaz, Novais o entusiasmava para que escrevesse,
detectando o Gabriel García Marquez que chegaria ao Nobel?
Um fim de tarde estamos
no La Rhumerie do Boulevard
Saint-Germain a beber cerveja.
Vêm cumprimentá-lo e sentam-se connosco dois conhecidos seus, Brigitte Bardot e
Roger Vadim . Estonteante momento para um jovem transmontano.
Levo-o a visitar uma amiga num prédio do Quai des Grands-Augustins e, numa jactância tola, digo-lhe que no andar de cima vive Picasso. A vergonha viria de saber que ao pintor já ele desde os anos 20, quando vivera em Madrid, tratava por Pablo.
Sempre me confundiu, e
continua a surpreender, que o jovem vimaranense que foi secretário de Manuel Azaña, o presidente da República espanhola;
o jornalista brilhante; o intelectual que
tão alta consideração gozou
nos meios políticos, literários, artísticos e cinematográficos, em Espanha,
França e no Brasil; o português que conheceram e frequentaram todos os
"grandes" opositores políticos, escritores, artistas e cineastas
portugueses que nas décadas de 50 a 70 viveram em Paris; o homem que tantas
portas abriu e tantos compatriotas ajudou; continua a surpreender, sim, que
toda essa gente se tenha calado e cale.
Apenas duas excepções
conheço: os pintores António Dacosta (1914-1990) e Maria Helena Vieira da Silva
(1908-1992). E o bom António Alçada-Baptista (1927-2008), que algumas vezes o
visitara, nada lhe devia, e
se pasmava da ingratidão duns e da ignorância dos mais, ensoberbados por terem
fama no Chiado.
Satisfeito o pedido,
dada a ajuda ou concedido o favor, essa gente distanciava-se a seguir quanto
podia, pois sentiam que com a sua experiência de muitas vidas, e talento
para "radiografar" comportamentos, Novais Teixeira lhes punha a alma e a sabujice a nu.
Ainda andam por aí
velhotes importantes que, quando se lhes fala de Novais Teixeira, tomam o ar
nebuloso dos primeiros sintomas de Alzheimer e acenam vagamente que sim, acho
que me lembro, era um jornalista, não era? A vontade que então dá é de fazer
coisas incompatíveis com a minha idade e as boas maneiras.
Não era de queixas, mas
amargurava-o o sentimento de quanto lhe doía Portugal, e que nos vissem
manhosos, pequenotes, fanfarrões sem jeito, e por vezes tão canalhas.
A fazer contrapeso,
refugiava-se ele numa idealização da pátria, com outra gente e recordações de
um Minho de As Pupilas do
Senhor Reitor. Mas era teatro, e a
sua inteligência não lhe deixava continuar por muito tempo a comédia. Voltava
então à cena o verdadeiro Novais Teixeira, o homem que de tão modesto parecia
ser o avesso de brilhante, mas cujas qualidades intelectuais cintilavam mesmo
na mais anódina das conversas.
J. Rentes de Carvalho, in Jornal de Letras de 11 de Janeiro de 2012
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