Da água e dos seus usos (4)



Fotografia de Eduardo Brito

 
Na documentação mais antiga, são escassas as referências à rota de condução da água para a Vila. Há porém, na toponímia de Guimarães, um lugar com um nome sugestivo: o Terreiro do Cano (o Campo do Salvador ou de S. Mamede), que é abraçado por duas ruas: a rua do Cano de Cima, a Nascente, e a rua do Cano de Baixo, que corre pelo Poente. Estamos seguros de que seria por aí que passava o Cano da Vila que, já em 1390, alimentava o chafariz da Praça Maior. As sucessivas renovações a que o cano da Vila foi sujeito ao longo do tempo terão levado a uma pequena alteração na sua rota, concretizada provavelmente em meados do século XVIII, tendo passado a seguir por fora da muralha até junto da Torre dos Cães, local onde atravessaria para o espaço intramuros. A água era conduzida desde Mesão Frio até ao Cano e, a partir daí, seguia até junto da muralha. Escavações arqueológicas recentes, no actual Largo da Mumadona, mostraram uma estrutura subterrânea com uma caleira de condução de água, que seria um troço do antigo cano da Vila por onde era conduzida a água da Serra.

No passado, o abastecimento público fazia-se através dos chafarizes e dos tanques que estavam dispersos pelo espaço urbano. Falaremos de um único exemplar. Em 1587, foi mandado construir um novo chafariz público na praça do Toural, que passaria a ser, nos meses de Verão, ponto de encontro e de convívio da gente nobre da vila. Em finais do século XVI, o Toural era um espaço público muito concorrido. Aí se realizavam touradas e outros espectáculos públicos. O pároco de S. Sebastião, na resposta ao inquérito das Memórias Paroquiais de 1758, descreveu o campo ou terreiro do Toural como sendo "o de melhor vista e praça desta vila, onde está um chafariz do povo de vistosa grandeza, cercado de assentos para recreação do povo". Situado no topo sul do vasto terreiro, o chafariz, de traça maneirista, delimitava a praça e as suas escadas eram frequentadas pelos vizinhos, para conversarem à fresca da água que corria das suas seis bicas.

O chafariz do Toural começou a ser desmontado no silêncio da noite de 26 de Outubro de 1865. A sua demolição seria completada no início de Junho de 1873, sendo as suas pedras guardadas na Praça do Mercado. Em 1891, ficou implantado em terreno fronteiro à Igreja do Carmo. É ali, no topo do jardim do Largo Martins Sarmento, que se encontra actualmente, aguardando o momento em que será desmontado para regressar ao Toural.

A partir de: Mãe-d'água: centenário do abastecimento público de Guimarães, ed. Vimágua/Sociedade Martins Sarmento, 2007.

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2 Comentários

Cristina Torrão disse…
Parabéns pelo livro "Mãe-d'água: centenário do abastecimento público de Guimarães" e por esta série que vem escrevendo aqui no blogue. Sensacional, gostei muito de ler!

Ao fazer as pesquisas para o meu romance sobre D. Dinis, nomeadamente, respeitantes à cidade de Lisboa, deparei com a designação de "Rego Merdeiro", que era um curso de água (o esteiro da "História do Cerco de Lisboa" de Saramago), que atravessava a actual Praça do Comércio e ia desaguar no Tejo. Ao tempo da conquista da cidade por D. Afonso Henriques, era apenas um esteiro, que atravessava a planície, mas, ao tempo de D. Dinis, em que Lisboa já crescera para fora da Cerca Moura, era um córrego, onde se concentravam todos os dejectos. O Rei Lavrador mandou encaná-lo, devido ao mau cheiro.

Realmente, o consumo de vinho na Idade Média (e até ao século XIX) era enorme, precisamente por a água estar tão infectada de dejectos e provocar diarreias.
Obrigado. A designação merdario/merdeiro para os rios (em geral, pequenos regatos) com funções de colectores de esgotos é relativamente comum no sul da Europa. Mas não sabia que em Lisboa também havia um.