Da água e dos seus usos (3)



Fotografia de Eduardo Brito

Os centros urbanos do passado distinguiam-se dos nossos especialmente por aquilo a que cheiravam. Na ausência de um sistema de esgotos colectivos, os despejos eram feitos directamente para a rua.

Percorrer as ruas da Guimarães dos séculos XVII ou XVIII, seria para nós, certamente, uma experiência tão surpreendente, quanto desagradável. Além dos dejectos que se despejavam nas ruas e nos terreiros e que escorriam para onde os levava a inclinação das ruas, os detritos acumulavam-se. Pela via pública circulavam cavalos, bois e cães, fuçavam porcos, debicavam aves de capoeira, e juntos contribuíam para transformar os espaços públicos em autênticas esterqueiras a céu aberto. A vila cheirava mal, tal como os seus habitantes.

Para os nossos narizes de contemporâneos, as cidades de outrora, sem sistema de saneamento público, nem de recolha de resíduos domésticos, deveriam ser insuportáveis. O lixo acumulava-se em todos os cantos. As pessoas livravam-se das águas sujas despejando-as para a rua, com o aviso prévio, três vezes repetido, do água-vai.

Como é evidente, todos estes dejectos lançados no solo originavam escorrências que contaminavam a água dos poços com que as populações se abasteciam. Ou iam ter ao curso de água que, na documentação medieval, era designado com o nome pitoresco de rio Merdário ou Merdeiro, que funcionaria como colector dos dejectos produzidos pela população. A nossa investigação suscita algumas interrogações acerca da identidade deste rio.

Nos Vimaranis Monumenta Historica, o Abade de Tagilde transcreve um documento de 1151 onde há uma referência ao arroio merdario, situado abaixo do monte latido. A. L. de Carvalho identificará o rio Merdário, que corria sub monte latido, com o rio de Couros, identificando o tal monte com o actual Monte Largo.

Todos sabemos que o monte Latito e o lugar que conhecemos por Monte Largo são sítios diferentes. O primeiro é a colina no topo da qual está implantado, há mil anos, o Castelo de Guimarães. O rio que corre pelo sopé dessa colina não é o rio de Couros, mas sim a ribeira de Santa Luzia, o rio Herdeiro ou ribeiro dos Castanheiros.

Pela análise da documentação medieval disponível, levanta-se uma dúvida: será que ambos os rios que abraçavam Guimarães medieval (o de Couros e o de Santa Luzia), por eventualmente exercerem a mesma função de colectores dos despejos dos moradores do velho burgo, tinham direito àquela designação e, em vez de um, teríamos dois rios Merdário ou Merdeiro?

Depois da Idade Média, o rio de Couros continuou a ser um colector de esgotos. Uma das novidades que este livro apresenta, é a notícia da existência, no início do século XVII, de uma latrina pública em Guimarães. No tombo de 1612, descreve-se uma casa que serve de privada pública da vila, situada no Campo da Feira. Era um edifício de pedra, de sobrado, com cobertura de telha. Por baixo, corriam os sobejos da água do tanque da praça da Oliveira, que cumpriam a função de sistema de limpeza permanente daquele equipamento colectivo. A exemplo do que já foi descrito para instalações idênticas de outros lugares da Europa da Idade Moderna, os utentes satisfaziam as suas necessidades no piso superior, onde haveria uma estrutura de madeira com um buraco sobre o qual se sentavam, caindo os dejectos no piso térreo, por onde corriam os escorros do tanque da Oliveira, que depois seguiriam o seu curso na direcção do rio de Couros.

A partir de: Mãe-d'água: centenário do abastecimento público de Guimarães, ed. Vimágua/Sociedade Martins Sarmento, 2007.

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