Guimarães, 1900: os vimaranenses homenageiam uma das suas principais referências, Francisco Martins Sarmento
Num tempo em que
tanto se fala dos vimaranenses e do seu tão especial modo de ser, recupero aqui
um texto que escrevi há uns anos, a pedido dos meus amigos do Cineclube de
Guimarães:
Dos vimaranenses
Nem sempre os nomes se ajustam
convincentemente aos objectos nomeados. Conheço eu um José que tem cara de
Serafim, um Francisco que melhor se chamaria se se chamasse Domingos, um
Custódio que só podia ser Alfredo, mas não é. O mesmo desajuste sucede, com
frequência, com os nomes que se dão aos que nascem ou moram em cada terra.
Porque lisboeta não servia, começaram a chamar-lhe alfacinha. Um autóctone do
Porto não tem, nem poderia ter, cara de portuense. Por isso lhe chamam, com toda
a propriedade, tripeiro. Como dos de Braga não se sabe muito bem o que possam
ser, ou parecer, chamam-lhes, sem critério, brácaros, bracaraugustanos,
bragueses ou bracarenses. O mesmo sucede com um aborígene de Coimbra, a quem
podem apelidar, indiferentemente, de coimbrão, conimbricense, conimbrigense,
colimbriense ou coimbrense. Já um natural de Guimarães só podia ser
vimaranense, porque, neste caso, o significante e o significado se ajustam com
a precisão da relojoaria suíça.
Os vimaranenses apareceram antes
de Portugal (aliás, como em Guimarães todos sabem, foi por já haver
vimaranenses que, depois, pôde haver Portugal). Como tudo nesta terra, a busca
da origem do gentílico que identifica os seus nativos conduz-nos até à
pré-história deste país. Ainda o ano mil vinha longe, já havia vimaranenses. O
nome que os designa tem origem germânica, por via de importação gótica, sendo o
resultado da soma de duas partículas: weig,
luta, ou weihs, santo, e mahrs, cavalo. De weigmahrs ou weihsmahrs,
o cavaleiro combatente ou o cavaleiro santo, derivaram vimaranes e vimaranense.
Cavaleiros, combatentes, santos: eis os vimaranenses.
Assim são os vimaranenses: gente
solidária e guerreira, com uma profunda devoção pelas marcas da sua identidade,
que se inscrevem no seu código genético, seja ele composto de reminiscências
simbólicas ou de granito. Por aqui ainda persistem as ideias de fidelidade aos
ancestrais e de pertença a uma estirpe única, embebida na tradição cavaleiresca
e medieval. É nesse espírito que os vimaranenses se revêem. Entre eles, o
cimento identitário é sólido e inquebrantável. Apesar de serem, as mais das
vezes, intolerantes para com os outros vimaranenses, juntam-se sempre a uma só
voz quando toca a reunir para enfrentarem a ameaça externa: os estrangeiros, os
arcebispos, as ofensas aos seus, o Secco, o Ávila, o Braga ou o Boavista. É
nesses momentos que irrompe, em toda a sua grandiosidade, esse estado único que
é o ser vimaranense. Combatente e santo.
Porque têm história, a história é
objecto de culto entre os vimaranenses. Não exactamente a história-ciência, tal
como agora consta dos livros e se ensina nas universidades. Essa, não lhes diz
grande coisa, porque há uma outra história, a deles, muito mais antiga, muito
mais perene, que se transmite de geração em geração, carregada de verdades
inquestionáveis. É a essa história que os vimaranenses se vinculam e que veneram
como parte indissociável da sua herança colectiva. Até o mais humilde e menos
letrado dentre eles será capaz de a defender, com a galhardia e a veemência dos
que se sabem senhores da razão, com o mais ilustrado dos catedráticos. Porque,
como já alguém disse, em Guimarães somos todos historiadores.
Todos os vimaranenses pertencem a
linhagens antiquíssimas. No mínimo, são descendentes de Afonso Henriques. Todos
são filhos de algo. É por isso que perguntam, sempre que alguém lhes é
apresentado:
-É filho de quem?
Há quem tenha dos vimaranenses a
imagem de homens e mulheres circunscritos ao seu castelo, aos redutos da
memória, do passado e das tradições imutáveis. Nada mais longe da verdade. Os
vimaranenses são cidadãos do Mundo. Ao longo dos séculos, também constituíram a
sua diáspora. Eles estão por toda a parte, espalhando o nome desta terra, como
não acontece com nenhuma outra, desde a sorridente Bárbara, estrela da TV, à
última Miss Brasil, Natália, passando pelo carismático seleccionador da Costa Rica
no último Mundial de Futebol, Alexandre. Todos são Guimarães.
Consta mesmo que no Brasil haverá
mais Guimarães do que em Guimarães. Até na política: um notabilíssimo
Guimarães, Ulysses, foi presidente, por duas vezes, da Câmara dos Deputados. E
ninguém o negará: sem os Guimarães, a literatura brasileira seria bem mais
pobre. São Guimarães, por exemplo, o Rosa, que no Brasil renovou o romance, e o
Bernardo, que escreveu as aventuras e desventuras da desditosa Escrava Isaura, assim como o
poema imoral A Origem do
Mênstruo, que basta ser lido para se perceber que só podia ter sido escrito
por um dos nossos.
Como bons portugueses, os
vimaranenses, além de historiadores, também são poetas. O maior de todos os
poetas de Guimarães também era brasileiro e chamava-se Alphonsus Henriques de
Guimaraens Filho. Existirá nome mais vimaranense?
Nos vimaranenses há um lado beato
e bentinho, que Raul Brandão, que bem os conhecia, descreveu magistralmente em A Farsa. Alguns deles, chegam a
ter cheiro de santidade. Mas também são gente dotada de uma ironia escarninha e
libertina, por vezes escatológica, que iluminam com um vernáculo sonoro,
desapiedado e desconcertante. Assim se explica que eles alcunhassem de
procissão do caga-ratos uma das mais antigas e solenes manifestações da sua
religiosidade, o cortejo do Corpus Christi.
Dizem dos de Guimarães que são
gente sem lei. Nada mais injusto. Para os de Guimarães há leis que são
sagradas. As suas, mesmo que não estejam escritas.
Dizem também, inspirando-se em
certa figura que espreita do alto para a praça da Oliveira, que os de Guimarães
têm duas caras. Não é verdade. Têm muitas mais, porque cada vimaranense tem a
sua. E apenas uma. Com excepção do Cucúsio, que tinha duas.
[António Amaro das
Neves, in Os Vimaranenses,
edição do Cineclube, Guimarães, 2007]
5 Comentários
E bem que este texto é uma chapada para os "visitadores" que desde há mil anos aqui assentam arraiais, abusam da nossa hospitalidade e nada entendem do HOMO VIMARANENSIS.
Confesso que este texto me veio há memória ainda há pouco, quanto estacionámos em cima da Torre da Alfândega, e o meu amigo te perguntou quem era o teu pai...
Ah: O meu pai rever-se-ia a 200% nesse teu texto!
Obriga por partilhar connosco este texto!