O Cometa Halley numa fotografia de 1910
Há exactamente 100 anos, nas vésperas da implantação da República,o cometa Halley fazia a sua aparição no Céu. O mundo esperou-o com curiosidade, mas também com medo. Temia-se o choque do cometa com a terra, acreditava-se que a sua cauda era composta por gases venenosos que poderiam contaminar a atmosfera terrestre. Em Guimarães, o cometa também foi tema de muitas discussões, nas quais informação científica e crendice se cruzavam. No dia 30 de Abril de 1910, o jornal vimaranense Independente publicava um extenso artigo em que explicava o fenómeno.
Aqui fica.
O COMETA DE HALLEY
A reaparição do cometa de Halley após uma ausência de 75 anos, tem sido tão anunciada que decerto os nossos leitores hão-de estimar que falemos dele.
Vamos primeiro aos factos, isto é, aos dados sobre o movimento real do Halley e sobre o seu movimento aparente na abóbada celeste. Depois, trataremos das teorias a respeito da origem e da natureza dos cometas.
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O cometa de Halley faz parte integrante do sistema solar.
A sua órbita é uma eclipse muito alongada com o Sol num dos focos e tendo o outro para além de Neptuno, isto é, a uma distância do Sol cerca de 30 vezes maior que a da Terra. E tão excêntrica é essa elipse que não obstante o enorme comprimento do seu eixo maior, o cometa, no periélio, passa cento e tantas vezes mais perto do Sol que a Terra.
O plano da órbita de Halley é pouco inclinado, cerca de 17o, sobre a elíptica, isto é, sobre o plano da órbita terrestre. Daí a probabilidade do encontro da terra com a cauda do cometa.
O Halley percorre esta imensa órbita em 75 anos, animado de uma velocidade variável com a distância ao Sol. No periélio, a velocidade é superior a 50 quilómetros por segundo, quase o dobro da velocidade da Terra na sua translação à roda do Sul.
No afélio é de cerca de 1 quilómetro por segundo, pouco mais do que a velocidade máxima duma bala de artilharia.
O Halley é invisível em quase todo o seu trajecto, mesmo o a olho armado. Só nas proximidades do Sol, e mercê da sua acção, é que os cometas adquirem luz própria e luz reflectida visível.
Na actual reaparição foi Wolf, de Heidelberg, quem, graças à fotografia, primeiro o surpreendeu, em Setembro passado, sob a forma de uma estrela de ínfima grandeza. Vinha ainda bem longe do Sol. Na sua derrota para o foco atravessou a órbita da Terra em Março ultimo e chegou ao periélio a 20 de Abril corrente. Começou nesse dia a afastar-se do Sol, devendo lá para Julho perder-se para a nossa observação na imensidade do espaço.
O movimento aparente do cometa no céu é relativamente complicado. Basta considerar que nós vemos esse astro de um ponto de vista em movimento, com a circunstância agravante dos dois movimentos, o da Terra e o do Halley, serem de sentidos contrários. E assim se compreende que o cometa, que neste momento já se está afastando do Sol, se aproxima da Terra até 18 de Maio.
Se o leitor quiser seguir as particularidades que vamos citar, do movimento aparente, figure numa folha de papel uma circunferência representando a órbita da Terra e uma elipse representando a órbita do cometa. E considere a Terra percorrendo a sua órbita no sentido contrário aos ponteiros dum relógio e simultaneamente girando em volta do seu eixo no mesmo sentido, e o cometa percorrendo a sua órbita no sentido contrário.
Isto posto, sigamo-lo desde Janeiro, época em que, com o auxílio dum pequeno telescópio, se podia descortinar na região do zodíaco onde então brilhavam Marte e Saturno. A sua marcha aparente no céu, tem sido desde então de Oriente para o Ocidente, ao encontro do Sol.
Na primeira metade de Março, já mais brilhante, mas ainda invisível a olho nu, podia procurar-se após o anoitecer do lado do poente, não muito acima do horizonte.
Foi-se acercando do Sol, desapareceu de todo afogado na sua luz, até que a 28 de Março teve lugar a sua conjunção superior, isto é, achou-se na mesma direcção que o Sol em relação à Terra, para o lado de lá do Sol.
Prosseguiu o seu movimento, para o Ocidente, afastando-se na aparência do Sol, e tornando-se visível, cada vez mais, como astro da manhã, particularmente na segunda metade de Abril. Hoje atinge o seu maior afastamento do Sol (quadratura ocidental), e as suas condições de visibilidade como astro da manhã são agora das melhores.
Nestes dias, especialmente com auxílio dum simples binóculo para melhor definição das estrelas, pode ver-se nascer cerca de duas horas antes do nascer do Sol, sem que a luz da aurora ofusque o seu brilho. Nasce um pouco ao sul do ponto onde nasce o Sol, logo depois e perto da última estrela do grande quadrilátero do Pégaso. É fácil dar com esta constelação: da estrela da Ursa-Maior que liga a carreta à lança dirige-se uma recta para a polar; nessa direcção, do outro lado da polar, a uma distância dupla, encontra-se o Pégaso.
O cometa, dia a dia com mais brilho, a cauda voltada para cima, vai nascendo cada vez maia tarde e mais de noite, caminhando agora para o Oriente, ao encontro do Sol.
Lá para o dia 15 de Maio, afogado na luz solar, já dificilmente se verá. Até que na noite de 18 para 19 tem lugar a sua conjunção inferior, isto é, encontra-se na mesma direcção que o Sol em relação à Terra, mas para cá do Sol.
Nessa noite o núcleo do cometa ou melhor a sua projecção, atravessa o disco solar de Ocidente para Oriente.
Mas como o fenómeno tem lugar pelas 2 h. da manhã, só os habitantes das regiões opostas do globo o poderão observar, se for observável, o que é duvidoso.
Na verdade está calculado que, pura que uma massa sólida escura possa ser denunciada ao atravessar o disco solar nas condições do cometa, é necessário que tenha mais de 100 quilómetros de diâmetro. E é muito pouco verosímil que massas dessa ordem e grandeza existam no cometa, considerado, ao que se crê, segundo veremos, como um enxame de meteorólitos ou pedras do céu da natureza das que se encontram nos museus; porquanto, em Dezembro passado, um astrónomo alemão assistiu à passagem duma estrela de duodécima grandeza por detrás do núcleo do cometa não só sem ocultação, mas sem mudança na cor ou enfraquecimento no brilho.
Mas se não nos é dado ver a passagem do núcleo sobre o Sol, talvez possamos ver a cauda luminosa do cometa atravessar a Terra, mercê do pouco luar que deve haver a essa hora da noite (a lua cheia é a 24 de Maio). Um feixe luminoso caminhando de Oriente para Ocidente envolverá a Terra, sendo de crer que, ao menos no horizonte se possam notar reflexos aurorais iluminando a atmosfera.
Gravura representando a aparição do Halley em 1835
Mas será assim? Eis o que se não pode afirmar com absoluta segurança, por isso que é apenas provável e não é certo que a cauda chegue à Terra. Será preciso para isso que ela tenha o comprimento colossal de 22 milhões de quilómetros; e se a aparição de 1835 permite facilmente acreditá-lo não devemos esquecer que os cometas sofrem grande decadência nas passagens periélias.
Mas quer a cauda envolva ou não a Terra, os efeitos materiais do fenómeno podem dizer-se nulos.
Sabe-se, de uma maneira certa, que a massa total do cometa de Halley é muito mais pequena que a da Lua. Ora sendo muito provável, como veremos, que as caudas cometárias não passem de simples emanações de gases emitidos pelo núcleo na vizinhança do Sol e sob a sua acção, pode afirmar-se que a massa da cauda é uma fracção pequeníssima da massa total do cometa. Mas suponhamos mesmo que não era assim, e que a massa total estaria espalhada uniformemente; a extensão da cauda é tal que a densidade de uma massa como a Lua uniformemente disseminada por ela será inferior à do ar na mais perfeita bomba pneumática. Pode supor-se que na cauda dos cometas a matéria é tão rarefeita como nos tubos de Crookes onde se geram os raios X e onde a pressão se avalia por milionésimas partes duma atmosfera; os fenómenos luminosos de que os tubos podem em diferentes circunstâncias ser a sede, tornam muito verosímil a aproximação.
Por conseguinte, ainda que esse meio extremamente rarefeito da cauda fosse formado unicamente de um gás tão venenoso como o cianogénio (cuja presença, na verdade, tem sido denunciada nos cometas por meio do espectroscópio), mesmo em tal caso, que mal nos poderia fazer? Muito menos com certeza que o da atmosfera viciada duma cidade industrial.
De mais se isto precisasse de confirmação, poderia citar-se o que se passou com o cometa de 1861, e porventura com outros, cujas caudas atravessam a Terra sem se dar por isso.
Mas o cometa não pára. Realizada a conjunção na noite de 18 para 19, ali continua o seu movimento para Oriente, afastando-se do Sol e tornando-se então um astro da tarde que de dia para dia, cada vez será visível, durante mais tempo.
Mas como se vai afastando da Terra (e do Sol), o seu brilho vai diminuindo, até que em Julho deve desaparecer, como dissemos.
Porém na última semana de Maio e na primeira de Junho, deve ser esplêndido o espectáculo do cometa, muito luminoso, com a sua cauda imensa elevando-se no céu do lado do poente! Quem não há-de enlevar-se perante tal espectáculo, decerto superior ao do magnífico cometa que nos foi dado contemplar na segunda metade de Janeiro.
[Independente, n.º 438, ano 9.º, Guimarães, 30 de Abril de 1910]
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