Da normalização da ortografia


Em Dezembro de 1878, um grupo presidido por Adriano de Abreu Cardoso Machado apresentou à Academia Real das Ciências um pedido para que se providenciasse a publicação de “uma gramática e um dicionário ao mesmo tempo ortográfico e prosódico ou ao menos um vocabulário”, de modo a que se satisfizesse uma “necessidade que todos reconhecem e sentem, – a de uma ortografia normal”. O texto incluía um “parecer da comissão de reforma ortográfica”, cuja leitura fará algum sentido, pelo menos como mera curiosidade, agora que se discute a questão da normalização da língua através do tão discutido acordo ortográfico. Se outro interesse não tivesse, este texto, não tanto pelo que nele se escreve, mas pelo modo como se escreve, é revelador do muito que evoluiu a ortografia da língua portuguesa desde finais do século XIX. Aqui fica um excerto:


"A istória ensina, que o português primitivo, a língua do berço da monarquia (Entre Douro e Minho), a que falávão os senhores e ómens d'armas que ajudárão Afonso Enriques a fundar este reino, éra uma mistura da linguájem rude dos aboríjenes (mistura tambem) e do latim bárbaro das lejiõis românas, – mistura alterada com elementos introduzidos pelos conquistadores do nórte, principalmente os suévos e vizigódos, e tambem pelos sarracenos, e alterada ainda, depois de conquistado o sul, por motivo das relaçõis com os seus abitantes já meio árabes e outros árabes verdadeiros, e, depois de estabelecida a capital em Lisboa, por cauza da colonização vinda de Marrócos e do grande número d'estranjeiros que concorríão ao seu porto, particularmente os cruzados mitos dos quais aí ficárão; bem que móstre que predominava o elemento latino, pelo mito que se encarnara na Península o módo de ser dos românos, por ser o latim a língua dos atos religiózos e das relaçõis com Roma e com os outros governos da Európa, e porque os sacerdótes érão quázi os únicos ómens de letras no país. Assim como nos ensina que esse amálgama éra apenas língua falada; porque pouco ou nada se lia e escrevia, visto que o elemento burguês apenas se fazia sentir, e os senhores só cuidávão de armas, desdenhando até o saber ler e escrever, – erro de educação que durou em parte até não mito lonje de nós.

Póde pois imajinar-se o que éra o português d'éssas épocas, e atésta-o o mito pouco que d'ele résta. Póde dizer-se que não se escrevia; e falava-se um português tão simples, quanto érão simples os ómens e a vida que vivíão."


in Reprezentação á Academia Real das Ciências Sobre a Refórma da Ortografia, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878 [Project Gutenberg Ebook]

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