À volta do rio "merdário"

Ribeira de Santa Luzia, junto à ponte, na festa de S. João de 1952
(fonte: «Guimarães do passado e do presente», org. de Joaquim Fernandes, 1985)

Em documentação medieval, aparece referido um rio que banha a vila de Guimarães, e que é designado de Merdário ou Merdeiro. Tal nome parece demonstrar que este curso de água, à imagem do que sucedia naquele tempo com rios de outras localidades que tinham nomes aparentados com estes, funcionaria como colector dos dejectos produzidos pela população.
Nos Vimaranis Monumenta Historica, o Abade de Tagilde transcreve um documento de 1151 onde há uma referência ao arrogio merdario, situado abaixo do monte latido. Numa nota de pé de página a um outro documento, o organizador dos Vimaranis identifica o Monte Latito com o actual Monte Largo. Em outro documento publicado pelo Abade de Tagilde, do mesmo ano, fala-se do riuuolo corios e do ribolum merdarium. Mais tarde, A. L. de Carvalho identificará o rio Merdário, que corria sub monte latido, com o rio de Couros. Tomando por base a leitura do Abade de Tagilde, este autor partiu do princípio de que o tal monte Latito seria o actual Monte Largo.
O monte Latito que aparece na documentação medieval e o lugar que hoje conhecemos por Monte Largo são sítios diferentes. O primeiro é a colina no topo da qual está implantado, há mil anos, o Castelo de Guimarães. O rio que corre pelo sopé dessa colina não é o rio de Couros, mas sim a ribeira de Santa Luzia, o rio Herdeiro ou ribeiro dos Castanheiros de que se falava atrás.
A investigadora que melhor estudou o espaço urbano de Guimarães na Idade Média, Conceição Falcão Ferreira, estudou documentação medieval que indica que a choussa do lugar do Proposto tinha confrontação, por um lado, com o rio Merdeiro e, por outro, com o rego que se dirigia para as almuinhas de Gatos. Nas proximidades, havia um moinho, a par do rio Merdeiro.
Estamos em crer, em face dos elementos disponíveis, que, pelo menos desde A. L. de Carvalho, tem havido uma identificação duvidosa do tal rio Merdário ou Merdeiro que aparece na documentação medieval. Tal rio parece ser, segundo a nossa leitura, o que é denominado Herdeiro na descrição do Padre Torcato Peixoto de Azevedo, a qual foi sucessivamente replicada pelo Padre Carvalho da Costa na sua Corografia (obra que, em largas passagens dos capítulos referentes a Guimarães, não é mais do que uma transcrição quase literal das Memórias de Torcato, então ainda inéditas), pelos párocos que responderam às memórias paroquiais de 1758 e aos inquéritos paroquiais de 1842 e pelo próprio Padre Caldas. Aliás, falando do rio que designa como Herdeiro, Carvalho da Costa diz que lhe deram este nome, porque muita parte de seus moradores usam dele para sua limpeza. Esta expressão é enigmática: aparentemente, estaria a referir-se ao rio Merdeiro, mas continuava a designá-lo, como Torcato, por Herdeiro.
A propósito da utilização da palavra Herdeiro, em vez de Merdeiro, para designar um curso de água de Guimarães, Conceição Ferreira nota o constrangimento de alguns autores vimaranenses, que se recusam a ler correctamente a citada designação, e chamam-lhe rio Herdeiro, convictos, por certo, que o nome correcto era pejorativo para a terra em estudo. Esta conclusão é muito plausível. Todavia, notaremos que os autores que falaram no Rio Herdeiro (Torcato, Carvalho da Costa, Caldas) não falavam do mesmo rio, situado nas proximidades do Campo da Feira, a que se refere a conceituada medievalista, mas sim ao riacho ou regato chamado hoje o Rio dos Castanheiros, na Corografia de Carvalho, Rio Herdeiro que tem seu princípio no campo do Bom Nome, conforme consta na resposta que o pároco de S. Pedro de Azurém deu ao inquérito de 1758.
Este rio, a que chamavam Merdário ou Merdeiro poderá ser, assim, o rio que passa em Santa Luzia e atravessa o Proposto. É este rio que passa no sopé do Monte Latito, correndo, em linha recta, a cerca de trezentos metros do Castelo, enquanto que o rio de Couros passa a mais do dobro da distância.
Convirá notar que o lugar outrora conhecido pelo Proposto se distribui pelas freguesias de S. Paio e Azurém. Em nenhuma delas corre o rio da Vila ou de Couros (que atravessa Guimarães pelo Sul através da freguesia de S. Sebastião e se desfaz já em Creixomil). Pelo Proposto passa o rio Herdeiro (aqui mais conhecido pelo nome de ribeira de Santa Luzia), que corre muito longe do Campo da Feira ou da rua de Couros. Actualmente, é um fio de água que margina o Campus de Azurém da Universidade do Minho, do lado voltado para o Castelo, desaparecendo no limite da Universidade, junto ao que resta de um velho lavadouro público. A partir daí, está canalizado. A sua água mistura-se com a do rio de Couros, ao fundo da actual avenida Conde de Margaride.
Por outro lado, notaremos que nos Vimaranis há um documento de 1151, onde se traçam as delimitações de uma vinha situada algures, e que confronta, por um lado, com o riuulo de corios e, por outro, com o ribolum merdarium, não deixando dúvidas de que seriam duas linhas de águas distintas.
Mas as dúvidas persistem. Um documento não datado, mas que, segundo Alexandre Herculano, não será muito posterior às Inquirições de 1220, e que o Abade de Tagilde sugere que poderia ser um complemento àquelas Inquirições, fala de um moinho sobre um regato Merdário, junto à Fonte do Abade (unum moliendum super riuulum merdarij iuxta fontem abbatis). Nas Inquisições de D. Afonso II, de 1258, refere-se igualmente a proximidade do Merdário àquela fonte (rivulum merdatium usque fontem abbatis). Ora, não subsiste qualquer dúvida quanto à localização da Fonte do Abade: era um tanque no meio de um bosque situado nas imediações das Hortas do Prior, ou seja, não muito longe do rio de Couros. Será que ambos os rios que abraçavam Guimarães medieval, por eventualmente exercerem a mesma função de colectores dos despejos dos moradores do velho burgo, foram algum dia conhecidos pela mesma pitoresca designação de rio Merdeiro ou Merdário?
[A partir de texto do autor publicado no livro Mãe-d'água, Vimágua, 2007]

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