O final da Idade Média é marcado pela frequência de cataclismos que atemorizavam as gentes: a trilogia sinistra da fome, da peste e da Guerra. Impotentes perante os males que lhes invadiam o quotidiano, os homens voltavam-se para Deus, na esperança de encontrarem no sobrenatural a protecção para as suas aflições. A testemunhar este sentido da espiritualidade medieval, onde o maravilhoso e o fantástico marcavam uma presença muito forte, surgem novos santuários, aprofunda-se o culto das relíquias com poderes protectores e curativos contra as mais diversas maleitas, aparece um novo tipo de literatura em que se narram os milagres e prodígios associados aos santos e aos santuários.
Em Guimarães, a religiosidade popular cresceu à sombra de uma das marcas simbólicas da identidade local: a oliveira, que marca presença na história, nas tradições, no imaginário e nas crenças dos vimaranenses. A oliveira está presente nas armas da cidade e dela tomaram o nome a Colegiada e a Praça Maior. A árvore de que aqui se fala foi trazida, talvez no início do século XIV, do mosteiro de S. Torcato, onde dava azeite com que se alumiava o santo. Foi plantada junto à Colegiada, onde acabou por secar. Ficaria associada a uma série impressionante de milagres ocorridos no curto espaço de meio ano. O primeiro seria o do seu reverdecimento.
Os prodígios de que falámos aqui estão descritos no Livro dos Milagre de Nossa Senhora da Oliveira da Real Colegiada de Guimarães, pela pena do tabelião Afonso Peres, que o redigiu numa prosa despojada e sem pretensões estilísticas, ao estilo dos registos notariais, mas que, por datar de antes de antes do ano da Peste Negra (1348) tem o valor, se outro não tivesse, de ser a mais antiga obra do seu género escrita em português. O original deste documento perdeu-se, tendo chegado ao nosso conhecimento através de um apógrafo (cópia) transcrito em 1351 pelo tabelião Antoninho Lourenço, a pedido do cónego Esteve Anes. A versão mais antiga do Livro dos Milagres encontra-se na Torre do Tombo, para onde foi conduzida em 1863, juntamente com uma outra cópia incompleta do mesmo. Conhecem-se dois outros apógrafos, um de 1620, que está no Arquivo de Guimarães, e outro de 1645, que agora pertence ao Arquivo da Universidade de Coimbra. Acaba de ser publicado um valioso estudo sobre o Livro de Milagres de Nossa Senhora de Oliveira, da autoria da investigadora Célia Cristina Fernandes, que inclui uma edição crítica e comparada das quatro versões conhecidas deste precioso documento.
O Livro dos Milagres foi produzido no contexto do processo de afirmação da Colegiada de Guimarães enquanto centro de culto mariano. É uma obra que se enquadra num género muito popular ao longo da Idade Média e da Idade Moderna, marcado por intenções moralizadoras e instrutivas, mas também com claros propósitos propagandísticos, já que visava atrair peregrinos para os santuários onde os milagres ocorriam. Ao longo do século XIV, a Colegiada de Guimarães, enquanto espaço de culto a Nossa Senhora, foi ganhando dimensão e conquistando devotos, dos quais o mais destacado será, seguramente, o rei D. João I.
No Livro dos Milagres são descritos 45 prodígios operados por Nossa Senhora: o milagre da ressurreição da oliveira e 44 curas milagrosas. Todos os milagres acontecem próximo da Oliveira (com uma única excepção, uma mulher de Coimbra, que estava “inchada de morte” e se salvou). Os miraculados são originários de um espaço muito alargado, que vai desde Viana do Castelo até Tomar. Curiosamente, só há duas pessoas de Guimarães (uma de Gondar, outra de Nespereira) que receberam a graça da cura por obra da Senhora da Oliveira.
O milagre operava-se através da restituição ao enfermo de algo que havia perdido ou lhe tinha sido retirado: a visão, a audição, a fala, o movimento ou o juízo. Mais de metade das curas milagrosas referem-se a cegos que passam a ver (23 casos). Em segundo lugar, foram agraciados endemoninhados, ou seja, pessoas com padecimentos que hoje associámos a distúrbios de foro psiquiátrico ou neurológico (11 casos). Quatro paralíticos (entolheitos) recuperaram o movimento, quatro), quatro mudos começaram a falar, uma surda voltou a ouvir e a tal mulher inchada sobreviveu a uma morte que parecia certa.
Todos estes milagres consagram uma relação de reciprocidade: o padecente recebe a graça, pagando-a, quase sempre, com uma procissão (a única excepção é a da miraculada de Coimbra, que ofereceu uma candeia à Senhora).
No seu estudo deste documento, Célia Fernandes procedeu à distribuição dos milagres pelos dias da semana, concluindo que o dia com maior número de milagres é o sábado (16), seguido do domingo (12) e da segunda-feira (9). As graças da Senhora concentram-se nestes três dias. Nos restantes quatro dias ocorrem, ao todo, menos milagres do que em qualquer um daqueles três (7). A quarta-feira não seria favorável a ocorrências milagrosas, não se registando qualquer caso nesse dia da semana.
Os prodígios descritos no Livro ocorrem num tempo bastante curto: entre 8 de Outubro de 1342 e 27 de Março de 1343. Muitas vezes se tem estranhado que, depois daquele período de grande actividade miraculosa da Senhora da Oliveira, praticamente não se conhecerem mais casos de milagres (no apógrafo de Coimbra, de 1645, foi acrescentado posteriormente um milagre que ocorreu em 1652 com a nau Nossa Senhora da Oliveira, que saiu incólume de um incêndio que devastou o galeão S. Paulo, quando ambos os barcos seguiam viagem para o Brasil). Martins Sarmento, em 1871, numa polémica que manteve com o Chantre da Colegiada sobre a Oliveira, dá-nos uma pista para explicar o fenómeno da cessação dos milagres:
Seja o que for, os procuradores das obras da Colegiada pediam traslados destes milagres, para os “mostrar aos fiéis de Deus cristãos para fazer de suas ajudas para a obra de Santa Maria”, e a caixa de esmolas do Padrão estava tão afreguesada que o Prior Propôs aos cónegos a troca dela pelos dízimos da igreja de Azurém, como já dissemos. O Cabido aceitou o contrato; mas, feito ele… os milagres acabaram!
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