Passarinhas e sardões

No dia em que se celebra a mártir Santa Luzia, ocorre o arraial das passarinhas, uma das mais singulares festas tradicionais vimaranenses, onde a religiosidade popular surge embebida em manifestações de carácter profano, nas quais a fé no poder protector da Santa se encontra com práticas imbuídas de boa dose de malícia inofensiva.

A romaria de Santa Luzia tem lugar, em cada 13 de Dezembro, junto da pequena capela que é dedicada à padroeira dos males dos olhos, construída pelo ano de 1600, no mesmo lugar da rua que lhe tomou o nome onde antigamente se situava uma gafaria (recolhimento de leprosos) para mulheres. A origem desta romaria está esquecida na memória dos séculos. É promovida pela Colegiada da Oliveira, havendo fama de que o seu rendimento em dinheiro, resultante das ofertas dos devotos, não será desprezível. A devoção a Santa Luzia é, entre nós, muito grande, não se circunscrevendo ao dia da romaria (o dia do ano em que a capela está aberta), conforme pode testemunhar quem passa à sua porta e vê as velas que constantemente ali são postas a arder em cumprimento de promessas.

Apesar da passagem do tempo e da mudança de costumes, a romaria de Santa Luzia continua a marcar presença de relevo no calendário devocional e festivo das gentes de Guimarães, que acorrem em grande número para fazerem e cumprirem promessas. Durante a romaria, realiza-se uma feira, que se estende pelos passeios da rua, onde tradicionalmente se faz a venda dos frutos secos típicos desta época do ano, com a castanha como rainha.

A festa de Santa Luzia de Guimarães distingue-se de todas as outras por nela ocuparem lugar central, além da santa protectora dos olhos, uns objectos de diferentes formatos que se expõem nas bancas das vendedeiras, moldados em massa de centeio ou de trigo, revestidos com uma cobertura branca de açúcar e alindados com pedacinhos de papel colorido, fitas e laçarotes. Essas guloseimas açucaradas assumem diversas figuras, que representam, nomeadamente, cornetas, cruzes, relógios, cães ou cavalos. Mas, nesse dia, o centro das atenções é ocupado pelas passarinhas (que competem com Santa Luzia para darem o nome ao arraial) e pelos sardões.

Não será necessário grande conhecimento de linguagem simbólica nem de gíria de carácter sexual para fazer associações coloridas entre aqueles objectos e o seu significado. Entre as centenas de designações populares que se aplicam aos órgãos genitais feminino e masculino, a passarinha e o sardão são dos mais utilizados no linguarejar do nosso povo.

Tanto os nomes, como as formas daqueles objectos festivos (que, pormenor que convirá notar, são envolvidos por uma cobertura de açúcar), nos remetem para sobrevivências de cultos fálicos ancestrais, de que não faltam referências em velhas descrições no folclore português, mas que hoje já se encontram extintos ou em extinção em praticamente todo o lado. Mas não em Guimarães, como se vê.

É certo que vivemos tempos em que uma poderosa máquina de aculturação vai esmagando usos e costumes tradicionais de cunho local, substituindo-os por uma mitologia mais ou menos urbana com uma forte componente comercial, que explica, por exemplo, a moda, de importação recente, da celebração do dia de S. Valentim (santo manifestamente alienígena às nossas tradições), tornando-o num dia dos namorados com dimensão planetária.

Mas, entre nós, a romaria de Santa Luzia lá vai continuando a ser um momento de aproximação entre os sardões as passarinhas, ou seja, um dia em que os namorados se encontram e trocam prendas que são promessas amorosas.

No arraial das passarinhas, compram-se os agrados com que rapazes se esforçam por conquistar as raparigas dos seus corações, na esperança de receberem em troca uma prenda que é um sinal e um prometimento. Enquanto os romeiros se recolhem na capela, oram e pagam promessas à milagrosa, virtuosa e casta Santa Luzia, há gente moça que participa num ritual verdadeiro de acasalamento, durante o qual o rapaz entrega o sardão à rapariga dos seus sonhos esperando que ela lhe entregue, em troca, a sua passarinha, num jogo figurado onde afloram o amor, o desejo e uma porção q.b. de erotismo, porque a troca de presentes é a afirmação de um compromisso amoroso que envolverá sempre uma promessa de ir mais além. Como o descreveu o grande Alberto Vieira Braga, este é um momento de oferecimentos maliciosos, que tomam um cunho irreverente e avermelhado: “se me deres a passarinha, eu dou-te o meu sardão”…

No dia de Santa Luzia, oferecem-se também os segredos. São caixinhas de cartão no interior das quais, numa cama de algodão em rama, se recolhem, em miniatura, um sardão, uma passarinha e um coração que guarda um segredo, ou seja, uma dedicatória amorosa em forma de verso, que os rapazes oferecem às raparigas.

Embora o arraial das passarinhas tenha lugar durante a romaria de Santa Luzia, a troca destes presentes um tanto ou quanto lúbricos não é exclusiva desta festa, uma vez que também surge no arraial da Senhora da Conceição, que tem lugar no dia 8 de Dezembro.

Ninguém sabe dizer ao certo quando começou este costume. Faça-se para que nunca se venha a saber quando acabou.

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