Os apontamentos de Sarmento

Francisco Martins Sarmento nasceu em 9 de Março de 1833, no seio de uma família abastada de Guimarães, com raízes em S. Salvador de Briteiros, onde fica a casa solarenga onde se costumavam contar as histórias dos mouros da Citânia, uma povoação cujas ruínas se podiam ver no Monte de S. Romão, ali bem perto. Por não ter que se preocupar com questões financeiras, estava-lhe destinado um futuro semelhante a boa parte dos jovens endinheirados do seu tempo: mergulhar na ociosidade e esbanjar a fortuna que recebeu em mãos. Mas, este Sarmento, mais do que de bens de fortuna pessoal, era dotado de um espírito inquieto que o empurrava para a aventura do conhecimento. Era, no sentido original da palavra, um filósofo. A sua permanente busca de erudição levou-o por diferentes áreas do saber, em busca do seu próprio caminho.

Começou por se fazer poeta, chegando a publicar um livro, mas acabaria por renegar a poesia. Os seus estudos encaminharam-no para a História. A partir de finais da década de 1860, começou a cultivar a arte da fotografia. A paixão pela História e a fotografia acabariam por fazer dele arqueólogo. Em meados da década de 1870, começou a estudar metodicamente a Citânia de Briteiros, procurando desvendar os segredos que aquelas velhas ruínas ocultavam. Para tal, recorria ao registo fotográfico. Através de dois álbuns fotográficos que enviou a instituições e cientistas do seu tempo, Sarmento atraiu as atenções do mundo para a sua Citânia.

Para compreender a sua Citânia, Martins Sarmento sentiu necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a realidade que a envolvia. Caminhava por terrenos que permaneciam por desbravar: nos seus livros, nada ou quase nada havia sobre tal matéria. Meteu os pés ao caminho, e as mãos à obra. De amigos, conhecidos e pessoa cuja existência até aí ignorava, ia recebendo informes sobre as velharias e as tradições que jaziam espalhadas por campos, outeiros e montes. Dotado de um notável espírito de observação e de um raciocínio penetrante, a sua experiência de caçador de perdizes e coelhos armava-o com a resistência suficiente para aguentar longas caminhadas exploratórias. De novo caçador, mas agora de ruínas e notícias arqueológicas, ao longo de duas décadas, Sarmento esquadrinhou todo o território do noroeste peninsular e foi observando vestígios e colhendo informações que falavam da antiga ocupação humana desta região, reflectida nas marcas das pedras que o tempo não tinha apagado e na tradição oral transmitida de geração em geração. Inicialmente, o âmbito das suas pesquisas limitou-se aos territórios circunvizinhos da sua Citânia; com o transcurso do tempo e os avanços dos seus estudos, foi alargando o campo de trabalho. As suas principais referências foram sempre a Citânia de Briteiros e o Castro de Sabroso, que desde cedo se constituíram em padrões das suas análises comparativas.

As notas dessas excursões e as notícias que a sua rede de informadores lhe fazia chegar foram vertidas para cadernos de apontamentos. Através delas, ficámos a conhecer melhor o percurso exemplar do pesquisador das nossas antiguidades: um homem talentoso e sagaz, que, movido por uma imensa curiosidade intelectual, vai sendo o sujeito da construção do seu próprio conhecimento. Por estas páginas observámos o percurso de alguém que, de simples curioso pelas velharias de outros tempos, sustentado por um espírito de pesquisador amador e por uma paixão de antiquário, se transforma num respeitável arqueólogo de renome internacional.

O investigador errante e perguntador sobe a montes e outeiros, desce aos vales, atravessa rios e ribeiros, buscando nas cicatrizes das pedras e nas memórias das gentes a presença das sombras dos homens cujas vidas se perderam nas lonjuras do esquecimento. A sua figura austera, de fisionomia alta e magra e semblante dominado pela barba negra, provocava muitas vezes estranheza àqueles com quem se cruzava no caminho. Este sentimento, adensava-se quando começava a fazer perguntas. Havia quem o julgasse lunático e quem visse nele um caçador furtivo de tesouros. Não raro provocava temor. Estas reacções desencontradas divertiam Sarmento, que deixou impressas nos seus apontamentos as marcas da sua ironia.

Os apontamentos de Francisco Martins Sarmento estão registados em cerca de mil páginas distribuídas por nove cadernos, sob o título de Antiqua. Compõem uma espécie de diário, que deveria servir de base aos livros que Sarmento tencionava escrever. Entre finais de 1881 e o início de 1882, Sarmento entendeu que as notícias de carácter etnográfico que ia obtendo justificavam um tratamento autónomo, separando-as das de natureza arqueológica. Registou então, numa das folhas de Antiqua: As tradições e superstições serão de ora em diante recolhidas em livro especial. Desta forma, iniciou um novo volume de apontamentos, intitulado Contos e Tradições Populares, onde recolhia as informações de carácter etnográfico. Estes cadernos irão acompanhá-lo até aos fins dos seus dias, uma vez que a última referência datada que nele se encontra é posterior à festa de S. Vicente de Ferreira (5 de Abril) de 1899, escassos meses antes da sua morte, numa altura em que a doença sem remédio já lhe minava o corpo.

Estes manuscritos que, desde sempre, têm sido preciosas fontes de informação para arqueólogos e etnógrafos, encontram-se entre os maiores tesouros que se guardam no Arquivo da Sociedade Martins Sarmento. Recentemente, libertados da caligrafia obscura de Sarmento, foram publicados em dois volumes, um com os apontamentos de natureza arqueológica, outro com os apontamentos etnográficos.

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