A Casa da Câmara e as duas caras (II)

Um dos traços distintivos da identidade vimaranense é a sua História. Guimarães é a terra onde os portugueses se reencontram com as suas raízes. Tem um passado de que a sua gente se orgulha e que não necessita de ser adornado com elementos espúrios que não a engrandecem. Vem isto a propósito de uma carta publicada na última edição deste jornal, na qual Barroso da Fonte (BF) dá conta da sua discordância fundamental em relação a três afirmações que constam do artigo sobre a Casa da Câmara e as duas caras que se publicou nesta rubrica.

Discorda de que seja recente a associação das duas caras ao episódio da conquista de Ceuta que terá envolvido as hostes de Guimarães, mas não demonstra o contrário. Ora, datando da década de 1980 a mais antiga notícia que conhecemos sobre tal assunto, não se poderá negar que seja recente, quando se refere a um facto ocorrido há quase 600 anos.

Discorda também da afirmação de que, na língua portuguesa, cara nunca foi sinónimo de frente de batalha. Mas, como os dicionários, nada diz sobre tal assunto.

Discorda, por fim, da ideia da falta de sustentação documental e de tradição historiográfica de tal associação, convocando em seu apoio a autoridade dos nossos mais conhecidos historiadores. Em vão, porque nenhum dos que cita explicou, uma vez que fosse, o significado da estátua das duas caras à luz do episódio de Ceuta.

Deveríamos ficar por aqui, já que no nosso texto não expressamos qualquer opinião sobre a querela de Ceuta e da servidão de Barcelos, assunto que não nos desperta o menor interesse. Mas, como BF sugere que teríamos uma responsabilidade acrescida no esclarecimento desta matéria, tentaremos não o defraudar. Vejamos então o que dizem os nossos mais conhecidos historiadores.

Torcato Peixoto de Azevedo foi o primeiro a aludir ao episódio de Ceuta como origem da tal servidão dos moradores de Barcelos. Escrevendo quase três séculos depois da conquista daquela praça marroquina, fala duma provisão régia de 1417 que nunca ninguém viu. Sem entrarmos em detalhes fastidiosos, diremos apenas que as suas Memórias Ressuscitadas não serão o melhor referencial de rigor histórico (até porque troca datas, como nota BF, que lhe troca as páginas).

Assim sendo, não valerá a pena perder tempo com o que o Padre Carvalho da Costa diz sobre este assunto na sua Corografia, onde se limita a plagiar o Padre Torcato.

O Padre Caldas, nos seus Apontamentos, também segue Torcato, acrescentando a tal sentença que, segundo BF, identifica dezenas de intervenientes, explica os factos, data-os e esclarece os deveres dos barcelenses para com os vimaranenses a partir da Provisão régia que se reporta ao comportamento na Tomada de Ceuta. Bastará ler o documento para ver não é assim: a sentença apenas identifica os dois réus do processo, nada explica sobre os factos que estarão na origem daquela servidão, não data nada (remete para um tempo imemorial) e nada diz de Ceuta, nem de Barcelos.

O que BF diz que o Abade de Tagilde escreveu sobre a matéria nos Vimaranis Monumenta Histórica é pura invenção. Nas páginas que indica (351/358) não se encontra nem sombra dos dados essenciais da Provisão régia que levou àquela servidão. Nem se poderia encontrar, já que a obra se ficou pelo ano de 1380.

É certo que João de Meira, num texto notável com publicação póstuma em 1921, dedica um breve parágrafo à história de Ceuta e da servidão de Barcelos. Mas é igualmente certo que a classifica como uma lenda.

Diz BF que José Augusto Vieira reafirma a versão consensual desta história. Leia-se o Minho Pitoresco e ver-se-á que, depois de descrever a suposta servidão barcelense, o autor a classifica como uma anedota inventada por Carvalho da Costa, a quem chama de patranheiro, dando por certo que tal fraqueza e tal castigo só existiram na cabeça do padre Carvalho, que deu ouvidos e acreditou nas patranhas.

Tem BF razão quanto ao que diz Frei Francisco Xavier Camelo, que afirma que foi o Duque D. Jaime quem, no século XVI, libertou a Vila de Barcelos da injuriosa servidão, transferindo-a para os moradores das freguesias de Cunha e Ruilhe, que terá desanexado de Barcelos para entregar a Guimarães. Porém, contrariando Frei Camelo, bastará compulsar os Vimaranis para arruinar este argumento, uma vez que aquelas freguesias já pertenciam a Guimarães pelo menos desde o século XIII.

É sabido que A. L. de Carvalho, no seu Guimarães em Ceuta, aduz argumentos em favor do episódio de Ceuta e da servidão de Barcelos a Guimarães, que não terão sido suficientes para demolir as reservas que o insuspeito medievalista vimaranense Alfredo Pimenta lhe levantou, chamando-lhe história da carochinha. Nesse livro é referido um autor, que BF ignora, cuja obra poderá ajudar a iluminar esta questão. É Mestre António, cirurgião, autor de uma monografia de Guimarães datada de 1512, que conta que os habitantes de Cunha e Ruilhe se tornaram tributários da vila de Guimarães por terem fugido das guerras doutras partes. Ou seja, o tributo da vassoura não lhes foi transmitido por Barcelos.

Conclusão: não há evidência histórica do que se diz ter acontecido em Ceuta com as hostes de Barcelos e de Guimarães, nem da servidão dos barcelenses, nem de que Cunha e Ruilhe tenham herdado tal servidão. Mas sabe-se que estas freguesias já eram de Guimarães antes da conquista de Ceuta. E que a estátua da Casa da Câmara nada tem a ver com isto. Até que se demonstre o contrário.

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1 Comentários

Rui Vilaça disse…
Bom dia,
Serve este comentário para lhe mostrar agrado pela publicação que faz, como o assunto aqui tratado é referente a minha freguesia que é São Paio de Ruílhe pedia que me facultasse informações que a ela digam respeito.
Peço porque me parece estar bastante documentado e eu tenho grande apreço por todos os temas que envolvam a freguesia de Ruílhe.
Atentamente
Rui Vilaça