Vimaranis Monumenta Historica

Numa notável conferência que deixou inédita, que teria publicação póstuma em 1921, na Revista de Guimarães, João de Meira, o mais brilhante dos homens de letras da Guimarães do início do século XX, começava assim: não conhecermos a nossa própria história, diz um escritor moderno, é de bárbaros; conhecê-la, porém, viciada, tecida de burlas e de piedosas fraudes, é pior. Porque, no primeiro caso, com não sabermos quem somos, nem nos dizerem donde viemos, essa mesma ignorância obstará a que perpetremos muitos desconcertos; ao passo que, se laborarmos no vício de uma falsa informação, daremos muitas vezes, com a memória das fábulas que nos tiverem ensinado, razão sobeja e justificada para que se riam de nós.

A História Local de Guimarães tem longa tradição, com início em autores seiscentistas como André Afonso Peixoto ou Luís da Gama, de quem não se conhecem os escritos, ou Torcato Peixoto de Azevedo, cujas Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães alimentaram as obras dos escritores que, até aos finais do século XIX, se dedicaram a escrever sobre o passado vimaranense, como Carvalho da Costa, na sua Corografia, ou António José Ferreira Caldas, no seu Guimarães, Apontamentos para a sua História. Ostentando as marcas do seu tempo, a narrativa do Padre Torcato debita, por entre factos históricos, episódios fabulosos que remetem para tradições de origem obscura. As obras de Torcato, Carvalho ou Caldas ainda são objectos de inegável interesse para o estudo do nosso passado. Po­rém, devem ser encaradas, como aconselhava João de Meira, como frutos de uma credulidade extrema, recebendo sem re­flexão todas as lendas, ainda as mais fantasiosas.

Com a fundação da Sociedade Martins Sarmento e sob a inspiração do arqueólogo que lhe deu o nome, os estudos de História Local passaram a ser encarados como uma disciplina com preocupações científicas que não podia prescindir do rigor no tratamento crítico dos documentos com que trabalhava. O pioneiro dos estudos modernos da História de Gui­marães, João Gomes de Oliveira Guimarães, o Abade de Tagilde, dedicou-se à pesquisa, à decifração e à divulgação das nossas fontes históricas ao longo das três décadas que vão desde a criação da Revista de Guimarães, em 1884, até fim dos seus dias.

Da investigação perseverante e escrupulosa que desenvolveu nos arquivos e cartórios, resultou a construção de uma nova maneira de escrever a História de Guimarães que, entre muitas outras, abordou temáticas que só bastante tempo mais tarde se tornariam objecto das preocupações dos historiadores, como a história das epidemias ou do abastecimento de água.

A sua obra capital, os Vimaranis Monumenta Histórica, resultou de uma proposta aprovada pela Câmara Municipal de Guimarães em 6 de Abril de 1898, que pretendia reunir os documentos históricos vimaranenses, desde as eras mais remotas aos tempos actuais. A Câmara custearia a obra, de cuja execução foi encarregada a Sociedade Martins Sarmento. O trabalho seria assumido pelo Abade de Tagilde, que compilou e transcreveu os documentos que recolheu percorrendo, perscrutando e revolvendo arquivos públicos e particulares onde sabia e presumia existirem monumentos, que desde a Idade Média se referiam ao território vimaranense.

O primeiro volume dos Vimaranis Monumenta Historica veio a lume em 1908, reunindo 353 documentos referentes ao período que decorre entre os anos de 870 e 1380. Mas não seria o Abade de Tagilde, que faleceu em finais de 1912, a terminar a obra, nem o continuador que ele pretendia, João de Meira, que o seguiria no ano seguinte, aos 32 anos.

Há quase um século que se aguarda que se dê continuidade a esta obra fundamental da nossa historiografia, contribuindo para que, como escreveu João de Meira, não sejamos chamados de bárbaros, por ignorarmos a nossa história, nem sejamos objecto de mofa, por apresentá-la entretecida em lendas inaceitáveis.

Comentar

0 Comentários