O nome do Padrão (03)

 


O Padrão, cliché de Antero Frederico de Seabra,1862, Arquivo Municipal do Porto (Fundo Foto Guedes).
Via Nuno Saavedra/Fototeca de Guimarães

[Continua daqui]

Em 1706, o padre António Carvalho da Costa publicou o primeiro tomo da obra a que deu o título de Corografia Portuguesa e descrição topográfica do famoso reino de Portugal com as notícias das fundações das cidades, vilas e lugares, que contém varões ilustres, genealogias das famílias nobres, fundações de conventos, catálogos dos bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edifícios, e outras curiosas observações, que logo se tornou incontornável nos estudos históricos e geográficos portugueses. Dos seis tratados que aí dedica à Província de Entre-Douro-e-Minho, o mais longo é o primeiro, que é dedicado à comarca de Guimarães, estendendo-se por 43 capítulos e 170 páginas, enquanto que, para tratar da comarca do Porto, bastaram 65 páginas e, para a de Braga, não mais do que 18.

Na sua obra, Padre Carvalho da Costa transcreve, quase ipsis verbis, como se fosse obra sua, o que o Padre Torcato Peixoto de Azevedo, falecido no ano anterior à publicação da Corografia, deixara escrito nas suas Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, que permaneceriam inéditas até à sua edição de 1845. Pelo menos, era o que se julgava, por não se saber que, em grande parte, já tinham sido publicadas pelo Padre Costa. Na realidade, o que aparece nos capítulos que dedica a Guimarães é, quase tudo, obra do padre Torcato, toscamente disfarçada com pequenas alterações ao texto original - como, por exemplo, a conversão em algarismos dos números que apareciam por extenso, e vice-versa.

A seguir, iremos reproduzir a parte do capítulo XIII do tratado I da Corografia Portuguesa é em que se refere ao Padrão da praça da Oliveira. Na verdade, trata-se de uma repetição do texto que o Padre Torcato Peixoto de Azevedo dedicou ao mesmo assunto, e que já aqui foi reproduzido. Se não traz novidade, serve para ajudar devolver ao verdadeiro autor o que lhe pertence por direito, no ano em que passa o quarto centenário do seu nascimento daquele erudito e notabilíssimo escritor seiscentista vimaranense.

 

CAP. XIII.

Das Igrejas que apresentam os priores da Colegiada de Guimarães e das que apresentam as suas dignidades, e de suas rendas.

[…]

Tem esta Real Colegiada defronte da sua porta principal um Padrão e, entre ele, e a porta, distância de dezassete passos, está num pátio de passeio e de recreação ladrilhado, com assentos encostados à torre dos sinos,e à parede da Igreja, onde continuamente se acha conversação, principalmente nas manhãs, por ser hora em que todo aquele povo tem devoção de ir visitar a N. Senhora, e ouvir missa na sua Igreja, pela grande se, que tem no seu patrocínio para todas as suas necessidades. Foi feito este Padrão em tempo de el-rei Dom Afonso, o quarto, de abóbada de pedra em quatro arcos tunda dos sobre Quatro pedestais, e são de molduras muito bem lavrados, e cada um deles no alto tem uma ponta de diamante, que ficam mais altas que o tecto de abóbada; e no pano da parede de cada um destes arcos está um escudo das Armas do dito Rei. Está encostado ao arco, que fica defronte da porta da Igreja, um altar com a imagem da Virgem N. Senhora com o título da Vitória, pela que deu a el-rei Dom João, o primeiro, nos campos de Aljubarrota. Tem este altar o seu fundamento no alto sobre os mesmos pedestais, em que se fundou a abóbada, com que fica por baixo lugar, e serventia para se poder andar livremente, como se anda, e se serve por baixo de todos.

Ao pé do altar desta Senhora da Vitória está esculpida em meia talha na madeira a efígie do Licenciado Pedro de Lobão, o qual sendo advogado naquela Vila, tomou por empresa querer derrogar os privilégios, isenções, e liberdades dos caseiros, e servidores de N. Senhora, e seus Priores, e cónegos, e o fazia com tanta instância, e paixão, que estando uma manhã conversando junto deste Padrão com o Abade de Freita, e Luís Gonçalves, ambos cónegos daquela Colegiada, eles o repreenderam diante de outras mais pessoas da perseguição, que fazia aos tais privilegiados, e que se naquele negócio continuava, se guardasse da ira de Deus. Ao que ele respondeu, que não era o Diabo tão feio, como o pintavam, que enquanto vivesse (sem embargo do que lhe diziam) não havia de abrir mão disso; a qual palavra ele não tinha acabado de pronunciar, quando repentinamente caiu quase morto em terra com a língua fora da boca, mordendo-a, e com a fala de todo perdida, e rosto tão disforme, que mais parecia fantasma, que homem, e assim foi levado a sua casa, aonde logo expirou.

Foi este cadáver levado a sepultar ao Mosteiro de S. Francisco, donde se seguiu outro sucesso não menos maravilhoso; porque morrendo sua mulher depois dele 33 anos, se mandou enterrar no mesmo jazigo, o qual sendo aberto para esse efeito, se achou nele o corpo de seu marido todo inteiro, somente com o gorgomilo gastado, e as mortalhas. Foi assim tirado da cova, e posto à vista de todo o povo encostado à parede da Igreja, até ir o corpo de sua mulher para se recolher na sepultura, aonde foi outra vez sepultado com ela; e para exemplo, que mostrasse ao mundo o muito que N. Senhora quer, lhe sejam honrados seus privilegiados, e conservados seus privilégios, se mandou neste lugar tão público retratar neste miserável estado a este seu perseguidor, e escrever em pergaminho este prodigioso sucesso, para ficar em memória no Arquivo desta Colegiada.

Dentro deste Padrão está um cruzeiro de pedra dourado e pintado, com a imagem do Senhor crucificado, e a de N. Senhora, e S. João ao pé da cruz, e junto à imagem de N-. Senhora está outra de S. Dâmaso, e junto ao sagrado Evangelista a imagem de S. Torcato. Da outra parte da cruz virada para o altar de N. Senhora da Vitória, se vê uma imagem de N. Senhora do Rosário, e ao pé dela à mão esquerda deita Senhora, outra de S. Filipe Apóstolo, e da outra parte à mão direita a imagem de S. Gualter. Tem esta cruz sagrada um pedestal de escadas, aonde a gente daquele povo se assenta, e conversa.

Na haste da cruz, da parte donde está a imagem do Senhor Crucificado, e abaixo das imagens, que estão ao seu pé, se vê o seguinte letreiro esculpido em uma lâmina de bronze.

A onra * d* Deus* e d *Scã * Maria * & por * esta * Villa * mais* onrada * Seer * & o poboo * fez * fazer * esta * obra * Pero Steves * de Guimaraens * mercador * morador * em Lisboa * filho d * Estevaõ * Gcia * e de Mta * Pèz * na * E * M * CCC * LXXX * annos * VIII * dias * d * Setembro

*M.L.R.OFE. X*

Neste lugar fazia Deus muitos milagres por intercessão de sua Mãe Santíssima, pelos quais se verifica ser esta obra dele muito aceita; muitos estão em pergaminhos, que se guardam no Arquivo desta Colegiada, escritos por um Tabelião daquele tempo, que se chamava Afonso Peres, donde tirei o seguinte, por servir para este intento, e começa ele: Senhor Afonso Peres Tabelião na vossa Vila de Guimarães faço saber a vossa mercê, que na era de M. CCCLXXX. anos, oito dias de Setembro foi posta a cruz na Alvaçaria de Guimarães, e aduceu aí Pero Esteves nosso natural, filho que foi de Estevo Gracia, em outro tempo mercador de Guimaraens, e a qual cruz Gonçalo Esteves, irmão do dito Pero Esteves, diz que foi vontade de Deus, que lhe deu a entender, que fosse a Normandia Anafrol, e que comprasse a dita cruz, e aducesse a este lugar de Guimaraens onde está assentada a par da Oliveira, a qual oliveira, quando esta cruz a par dela assentaram, era seca, e daquele dia a três dias começou de reverdecer, e deitar ramos, e eu Afonso Peres Tabelião isto escrevi. Este milagre tresladei fomente do livro, onde estão muitos escritos, que se guardam no Arquivo daquela Igreja, para dizer que do dia dele se deu a esta Senhora o título de Santa Maria da Oliveira, que hoje conserva.

Pela certidão do Tabelião Afonso Peres se mostra, que quando se fez este Padrão, e se pôs nele a cruz, já nesse tempo estava plantada a Oliveira, a qual é tradição antiga, que viera para este lugar de junto ao Mosteiro de S. Torcato, e que do seu óleo se alumiava a lâmpada deste Santo, e que do lugar, onde estava, se arrancara, e fora transplantada neste, em que estava seca, quando N. Senhor fez nela o milagre de a reverdecer, e lançar ramos e e por não haver tradição, que no lugar, aonde ela se plantou, se plantasse outra; geralmente se tem por fé, que esta é a mesma Oliveira milagrosa, de que N. Senhora tomou o título. No tempo das guerras últimas se experimentava isto melhor, porque, os Soldados de toda a qualidade se armavam com seus ramos, tendo por fé que eram as melhores, e mais defensivas armas para suas vidas, e ainda hoje esta permanece, porque aqueles, que se embarcam, para fazerem sua viagem sem perigo, os levam em sua companhia, para que, como a pomba da Arca de Noé, ponham os pés na terra firme, que vão buscar; e como a experiência lhe tem mostrado os favores, que N. Senhora tem feito a muitos por meio dos ramos desta sua Oliveira, todos com grande devoção, e confiança se armão deles.

Tinha este Padrão antigamente de pilar a pilar uma grade de pau, com que se fechava, e naquele tempo não havia serventia por dentro dele, como hoje há. Tinha ao pé do cruzeiro, que dentro dele se pôs, uma pedra vazia por dentro e fechada com uma cobertura de ferro com um buraco, por onde os devotos desta Senhora se ofertavam, e os Romeiros com suas esmolas, as quais eram de repartição do Cabido, e rendiam tanto que sendo a Igreja de S. Pedro de Azurém dos Priores in solidum, trocaram o rendimento dela, dando-a ao Cabido pelo rendimento daquela pedra, cujo contrato se guarda no seu Cartório; e como se acabou a devoção, se acabou com ela o rendimento da pedra, que ainda hoje está no mesmo lugar.

Tem a sobredita Oliveira ao pé um pilar de pedra majestoso, todo cercado de assentos a modo de escadas, e está plantada no meio da praça maior, que toda é ladrilhada de pedra mui vistosa pela assistência, que tem de N. Senhora da Vitória no seu Padrão, e alegre pelo ruído que as três bicas de água do seu tanque fazem para divertimento de seu s moradores. É toda esta Praça cercada de casas de alpendrada sobre colunas de pedra, fechada de entre o Norte e Nascente com a Real Colegiada, e da parte de entre o Poente e o Norte com as casas da Câmara, e Audiências, as quais são coroadas de ameias, e no alto de suas paredes têm dois escudos das Armas Reais entre duas esferas douradas e pintadas, que fazem frente para a Oliveira e Padrão.

Costa, Padre Carvalho da, Corografia Portuguesa, Tomo I, Oficina de Valentim da Costa Deslandes, Lisboa, 1706, pp. 47-50.

[Continua aqui]

Comentar

0 Comentários