O Toucinho-do-Céu

Nas vésperas no campeonato da Europa de Futebol de 2004, ao apresentaras cidades que iriam acolher os jogos, a insuspeita revista Time publicou o seguinte:
Guimarães é chamada frequentemente o "berço da nação" porque foi aqui que, em 1128, Portugal declarou a sua independência dos espanhóis de Castela e da Galiza. Hoje, porém, é mais conhecida por uma sobremesa chamada toucinho-do-céu (Bacon from Heaven), um bolo rico de ovo e amêndoa com origem no convento de Santa Clara, fundado no século XVI. Quando um decreto republicano proibiu todas as ordens religiosas, em 1834, o convento desapareceu, mas os seus descendentes transmitiram uma versão da iguaria. O toucinho-do-céu tem um gosto açucarado único – perfeito para os fãs do futebol com a boca doce.
Apesar das passagens que nos fazem sorrir (o suposto decreto republicano de 1834, a sugestão de Guimarães ser mais conhecido pelo tal Bacon from Heaven do que por ser o berço da Nação, a menção a “descendentes” do convento de Santa Clara), o texto testemunha a importância que os prazeres da mesa podem assumir como factores de atracção turística.
O toucinho-do-céu de Guimarães é o mais doce dos tesouros que esta cidade oferece. Faz parte do famoso receituário das freiras de Santa Clara, de que tanto se fala, mas que nunca apareceu. Mas nos nossos arquivos não faltam referências aos doces predicados das freiras de Santa Clara de Guimarães. Os seus manjares mais afamados eram o toucinho-do-céu, as tortas e diversos doces de frutas, como o famoso calondro.
O Abade de Tagilde conta-nos as origens da actividade de doceiras das clarissas de Guimarães. Cada uma recebia 6$400 réis por ano, para o seu bolsinho. Pouco dadas aos rigores monásticos, as freiras, por acharem insuficiente a soma a que tinham direito, encontraram o meio para a aumentar, passando a dedicar-se à indústria dos doces para fora, arte em que desde cedo ganharam fama. Com o tempo, a coisa assumiu foros de abuso. O Arcebispo de Braga, no início de Dezembro de 1758, por lhe constar que as freiras de Santa Clara de Guimarães costumavam, pelo Natal, gastar mais tempo a fazer doces do que no serviço a Deus (além de se dedicarem a danças e entremezes profanos), interditou-lhes as artes pasteleiras desde o início do Advento até 7 de Janeiro. Em 1760 esta proibição seria renovada e agravada, passando o período de interdito a iniciar-se no dia de Santa Teresa (15 de Outubro).
Em Setembro de 1769, o mesmo Arcebispo, D. Gaspar, proibiria as freiras de fazerem doces de forno para vender, para pessoa alguma eclesiástica ou secular, ainda que lhes mandem o necessário para eles, excepto para os pais delas freiras, por motivo de moléstia, uma ou outra vez no ano, em quantidade que se reconheça ser por necessidade para moléstia. A proibição total deveria vigorar do dia de Santa Teresa até aos Reis.
Em 1771, a abadessa e as freiras de Santa Clara enviaram um requerimento ao Arcebispo, onde declaravam que se viam oprimidas com escrúpulos por lhes ser difícil observarem com rigor a proibição de fazerem doces de forno com os aparelhos que de fora lhes mandavam os seus parentes e pessoas a que licitamente deviam obrigações, e pediam dispensa do interdito até aos Santos. Foi-lhes concedida a licença pedida, limitando a interdição ao tempo entre Todos Santos e os Reis. No início de Dezembro do mesmo ano, as freiras pediram autorização para fazerem algumas chouriças, por ser ao presente a sua ração muito ténue, para se alimentarem pelo decurso do ano, as quais se não podiam fazer depois do Natal, mas sim antes dele por ser o seu próprio tempo. Esta autorização foi pedida porque tais chouriças levavam algum açúcar.
Em 1776, a abadessa obteve autorização do Arcebispo para que lhes fosse levantado o impedimento de fazerem doces para fora até ao primeiro domingo do Advento, o que já fora concedido aos outros conventos de Guimarães.
Há um episódio que demonstra o valor que era atribuído ao toucinho-do-céu de Santa Clara. Em 1564, dois terços dos rendimentos e frutos da Igreja de Santa Cristina de Arões foram anexados ao Convento de Santa Clara de Guimarães, in perpetuum. O terço restante ficava reservado para a côngrua e sustentação do abade. Todos os anos, pela festa de Santa Cristina (24 de Julho), as freiras enviavam ao abade de Arões uma caixa de toucinho-do-céu de 8 a 9 arráteis, a fim de lhe adoçar a boca para não ser remisso no pagamento. Em 1757, o beneficiário queixou-se de que a quantidade de doce que recebeu era inferior ao esperado. Como as freiras não atenderam o seu protesto, apresentou queixa ao juiz de fora de Guimarães. Não lhe dando este razão, o abade lambareiro levou a contenda até à Relação do Porto, que, em Fevereiro de 1760, confirmou a sentença do Juiz de Guimarães. A partir daí, o pároco de Arões não mais recebeu o doce apetecido.
Em 1884, Ana Angelina e Antónia Amália eram as duas últimas freiras de Santa Clara. Estiveram presentes na Exposição Industrial organizada por Alberto Sampaio, com vários doces, entre os quais celebrado toucinho-do-céu.
O toucinho-do-céu é a mais soberba das especialidades da doçaria vimaranense, preparando-se em várias casas que dizem seguir a receita de Santa Clara. Nem sempre será assim. O toucinho-do-céu é um doce conventual de ovos e amêndoa com chila. Não raras vezes, o que se encontra por aí é um doce de forno à base de chila, com ovos e sinais (às vezes, nem isso) de amêndoa. Uma excelente iguaria, para os apreciadores de chila. Mas que não lhe chamem toucinho-do-céu de Guimarães…

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