Espada de D. Afonso Henriques, gravura publicada no Arquivo Pitoresco, col. IV, Lisboa, 1861, pp. 255. (Clicar na imagem para ampliar) |
A espada de Afonso Henriques, que hoje se guarda no Museu
Militar do Porto, tem uma dimensão simbólica que ultrapassa largamente a sua
dimensão física que, aliás, é surpreendentemente maneirinha, à luz das descrições
daquele que a empunhava, que seria homem para medir nada menos do que 10
palmos, ou seja, muito mais do que dois metros. Sendo certo que aquela era a
espada que estava dentro no túmulo do primeiro rei de Portugal, na igreja de
Santa Cruz de Coimbra, de onde foi retirada após a extinção das ordens
religiosas, em 1834, a sua pertença a Afonso Henriques tem suscitado muitas
dúvidas. Pelas suas características, alguns especialistas têm-na datado de última
fase adiantada do século XV e que, a ser espada de rei, como parece ser, seria
de um outro Afonso, o quinto. Segundo a lenda, esta espada, juntamente com o
escudo de Afonso Henriques, teria sido levada, como amuleto protector, por D.
Sebastião para a desastrosa incursão de Alcácer Quibir, mas teria ficado
esquecida no barco que transportar o rei ao lugar que lhe serviria de
sepultura.
A revista Arquivo Pitoresco publicou, em 1861, a gravura que encima
esta nota, acompanhada por um texto onde se conta a história da misteriosa
espada de Afonso Henriques. Aqui fica.
Espada de
El-Rei D. Afonso Henriques
Foi esta a espada que libertou Portugal da dependência
de Castela; que conquistou aos moiros Lisboa, Santarém, Palmela, Leiria e
outras terras; a que fundou em Ourique a monarquia portuguesa.
Até à extinção das ordens religiosas, a
espada de D. Afonso Henriques conservou-se junta ao seu túmulo na capela-mor de
Santa Cruz de Coimbra; depois foi transferida para o museu do Porto; onde se
acha, e ali foi tirado o desenho que hoje apresentámos.
É sabido que el-rei D. Sebastião, quando partiu
para a desastrosa jornada de África, levou a espada e o escudo de D. Afonso
Henriques. Não tendo porém desembarcado estas armas, quando a armada regressou
ao reino foram estes dois monumentos restituídos ao convento de Santa Cruz. É
isto o que afirmam os nossos antigos cronistas.
Modernamente o douto padre Manuel da Cruz Pereira
Coutinho, redactor do Antiquário Conimbricense*,
publicando o fac-símile da carta original que D. Sebastião escrevera ao prior
de Santa Cruz, pedindo que lhe emprestasse a espada e o escudo de D. Afonso Henriques,
diz que o secretário geral do distrito de Coimbra tinha ordenado um escrupuloso
exame nos papeis do arquivo pertencentes ao cartório de Santa Cruz, com o intento
de descobrir alguns documentos por onde se possa evidenciar se aquelas armas
foram efectivamente restituídas ao mosteiro ou não.
Ignorámos porém qual foi o resultado desta investigação.
Do modo por que estas armas saíram de Santa
Cruz, é que há documento e testemunhos autênticos. Eis o que diz D. Nicolau de
Santa Maria na Crónica dos Cónegos Regrantes:
“Depois de ter assistido no dia 20 de Outubro
de 1570** a um doutoramento na universidade, passou D. Sebastião a visitar as
sepulturas de D. Afonso Henriques e D. Sancho. O prior-mor lhe mostrou a espada
de D. Afonso Henriques, a qual tomou D. Sebastião, e com grande veneração a
beijou, dizendo aos fidalgos da sua comitiva: “Bom tempo em que se pelejam com
espadas tão curtas! Esta é a espada que libertou todo o Portugal do cruel jugo
dos mouros, sempre vencedora, e por isso digna de se guardar com toda a
veneração.” E entregando-a ao prior geral de quem a recebera, lhe disse: — “Guardai, Padre, esta espada, porque ainda me
hei-de valer dela contra os moiros de África.”
“Passados oito anos, lembrado el-rei destas
palavras, a mandou pedir ao geral de Santa Cruz, D. Pedro de Assunção, para com
ela derrotar na expedição de África os sequazes de Mafoma, de cujos fulminantes
golpes tinham sido sanguinolentas vítimas; porém como estava determinada a última
ruína desta coroa, não permitiu a Providência que fosse vencida uma espada
sempre vitoriosa, ficando por esquecimento na armada em que el-rei navegou para
a África.”
A carta de el-rei para o prior de Santa Cruz
tinha-se extraviado quando se fez a mudança do cartório do convento; mas o sr.
Santa Rita, então secretário do governo civil, conseguiu a restituição, e
depois de permitir que dela se tirasse o fac-simile que saiu no primeiro número
do Antiquário, remeteu-a para a torre do Tombo.
Desse fac-simile é que é o traslado que vamos
apresentar, com a seguinte nota que lhe pôs o mesmo sr. Pereira Coutinho:
“Duas razões nos persuadiram à publicação desta
carta. Primeira, porque as obras impressas em que ela se acha não estão ao
alcance de todos. Segunda, porque a cópia que vem na Crón. dos Cónegos de Santo
Agostinho, onde Barbosa foi beber, além de omissa em partes, está quase toda
viciada, talvez por imperícia ou negligência de quem a trasladou.”
“Padre geral e convento do mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra. Eu el-rei vos envio muito saudar. Eu me tenho publicado em
haver de fazer por mim com ajuda de Nosso Senhor uma empresa em África, por
muitas e mui grandes razões, mui importantes ao bem de meus reinos, e de toda Espanha,
de que também resulta benefício à cristandade, o que me pareceu escrever-vos
assim para encomendardes ao Nosso Senhor o bom sucesso desta empresa, que por
seu serviço faço, como para vos dizer que desejo levar nela a espada e escudo daquele
grande e valoroso primeiro rei deste reino D. Afonso Henriques, cuja sepultura
está nesse mosteiro, porque espero em Nosso Senhor que com estas armas me dê as
vitórias que el-rei D. Afonso com elas teve. Pelo que vos encomendo muito que
logo mas mandeis por dois religiosos desse convento que para isso elegereis. E
como eu embora tornar, as tornarei a enviar a esse mosteiro, para as terdes na
veneração e guarda que é devido a cujas foram, e por tudo. E por aqui
entendereis que as não quero senão emprestadas para o efeito a que vou, e de
quão grande contentamento isto é para mim. Escrita em Lisboa a 14 de Março de
1578. — Rei.”
“Para o padre geral e convento do mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra.”
Acrescenta mais o cronista de Santa Cruz:
“Recebida esta carta, mandou logo o padre
prior limpar a espada do glorioso rei D. Afonso, e fazer-lhe uma bainha de
veludo, com sua ponteira de prata doirada, e uma caixa preta em que fosse metida
com sua chave, e fechadura doirada; e outra caixa preta em que fosse o escudo
do mesmo santo rei, para irem estas armas com mais resguardo e veneração, e as
mandou pelo vigário do mesmo mosteiro de Santa Cruz, D. Jerónimo, varão de
grande autoridade e de boa presença, que as entregou a el-rei, o qual as
recebeu com grande gosto e contentamento, dizendo, que se Deus lhe dava a vitória
que esperava, prometia de fazer canonizar o glorioso rei D. Afonso, como já o intentara
fazer el-rei João III seu senhor e avô.”
Muitos julgam que a espada de D. Afonso Henriques
é um montante enorme como o de ferrabrás; pois enganam-se, porque é curta e
estreita a que se guarda como coisa dele. Pode ser que tivesse outra; mas esta
deve ser a mesma que viu el-rei D. Sebastião em Santa Cruz de Coimbra, porque à
vista dela exclamou: Bom tempo em que se pelejava com espadas tão curtas! '
Enquanto não vimos a espada, supusemos sempre
que estas palavras eram irónicas; mas depois reconhecemos que D. Sebastião se admirara
com fundamento.
* Deste importante periódico apenas saíram 9
números em 1844.
** Data corrigida (no texto do Arquivo Pitoresco aparece 1750, gralha mais do que evidente). AAN.
in Arquivo Pitoresco, vol. IV, Lisboa, 1861, pp. 255-256.
** Data corrigida (no texto do Arquivo Pitoresco aparece 1750, gralha mais do que evidente). AAN.
in Arquivo Pitoresco, vol. IV, Lisboa, 1861, pp. 255-256.
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