Depois de Gaspar
Estaço, o Padre Torcato Peixoto de Azevedo escreveu sobre Guimarães e a sua história,
na obra que intitulou Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, datada de 1698 e editada pela primeira vez em 1845. Nas duas dezenas de referências ao
baldaquino gótico da Praça da Oliveira, nomeia-o meia dúzia de vezes como Padrão
da Senhora da Vitória (ou variantes simplificadas, como Padrão da Vitória ou Padrão
da Senhora, com uma ocorrência cada uma). As mais das vezes, chama-lhe,
simplesmente, o Padrão. Nunca o designa por Padrão do Salado (aliás, em toda a
obra, não aparece uma única referência a tal batalha).
A primeira
referência aparece no capítulo 65.º, na descrição do tesouro da Colegiada, se
lê:
Uma imagem de Nossa Senhora com seu bento filho nos braços, sobre uma peanha, que serve nas procissões do Padrão, tudo de prata dourada e esmaltada, com as armas dos Pereiras, pesa 17 marcos e 3 onças. 217
Um pouco
adiante, no capítulo 69.º, surge uma segunda referência, na transcrição de um requerimento
do Cabido ao rei D. Manuel I
E sabei que, em todos os anos que ao mundo vêm, é feita nela por todos os beneficiados, cónegos, clérigos, e coreiros e povo da vila, em véspera de Santa Maria, a 14 de Agosto, em Memória da real batalha de Aljubarrota, que em tal dia venceu o dito senhor rei, uma solene procissão mui devota, que em nenhuma outra parte se faz, e só se canta uma missa solene no padrão da Senhora da Vitória, pela guarda do rei e reino, com um devoto sermão. E no lugar mais alto daquele Padrão se manifestam, e põem as insígnias do pelote, loudel, videles, gorjal, e a mesma lança com que o dito senhor pelejava contra seus inimigos, e os vencia […]
Os capítulos
75.º, 79.º, 85.º e 86.º são dedicados ao Padrão e à praça onde está implantado.
Pelo que aí lemos, percebemos que o padre Torcato, profundo conhecedor da
história onde nasceu e morreu, há precisamente quatro séculos, não faz qualquer
associação deste monumento à Batalha do Salado, dizendo-nos o mesmo que já tinha
dito Gaspar Estaço: que o Padrão foi erigido por um comerciante de Lisboa, natural
de Guimarães, Pedro Esteves, que o mandou erigir “por vontade de Deus”, e não
de D. Afonso IV, e que, a partir da vitória de Aljubarrota e da subsequente
peregrinação de D. João I a Guimarães, passou a ser loca de culto a Nossa
Senhora da Vitória, que ali teve um altar até ao princípio do século XX.
Leia-se,
então, o que escreveu o Padre Torcato.
CAPÍTULO 75.º
Do padrão que a igreja Colegiada tem
defronte da porta principal.
Tem esta
Colegiada, defronte da porta da igreja um Padrão, e há, entre ele e a porta,
dezassete passos, em que está um pátio de passeio ladrilhado, com assentos
encostados à torre dos sinos, e parede da igreja, aonde todas as manhãs concorre
muita gente. Foi feito este Padrão em tempo de el-rei D. Afonso 4.°, em abóbada
de pedra, com quatro arcos fundados em quatro pedestais, e um dos arcos
corresponde à porta da igreja, e neste está um altar de Nossa Senhora, com o
título da Vitória, pela que deu a el-rei D. João o 1.º, em Aljubarrota. Tem o
altar seu fundamento sobre os pedestais, de sorte que, por baixo dele, se pode
andar livremente; nos panos das paredes dos ditos arcos estão as armas de el-rei
D. Afonso, e no alto da abóbada faz um bico de diamante.
Aos pés do
altar de Nossa Senhora da Vitória está esculpida em baixo relevo a efígie do
licenciado Pedro de Oliva, o qual, sendo advogado, pretendeu destruir os privilégios
do cabido e caseiros de Nossa Senhora, o que fazia com grande instância. E
estando uma manhã conversando junto deste padrão com o abade de Freitas e Luís
Gonçalves, cónegos da Colegiada, sendo por eles repreendido diante de outras
pessoas da perseguição que fazia, e que se guardasse da ira de Deus, respondeu
que não era o diabo tão feio como o pintavam, e que, enquanto vivesse, não
havia abrir mão do que começara. Ainda o não linha acabado de pronunciar quando
caiu mortal, com a língua fora da boca, a fala perdida e o rosto disforme e,
sendo levado para sua casa, tanto que a ela chegou deu o final arranco da vida.
Foi o cadáver
levado à sepultura que tinha em S. Francisco, onde houve outro sucesso não
menos maravilhoso que, morrendo sua mulher depois dele trinta e três anos, se
mandou enterrar no mesmo jazigo, o qual, sendo aberto, se achou o corpo do
marido todo inteiro, sem que a terra quisesse dele mais nada do que consumir-lhe
o gorgomilo e as mortalhas. Foi tirado da cova e posto à vista do povo,
encostado à parede, enquanto chegava o corpo da mulher, e depois se lançaram
ambos juntos na sepultura, pelo que se mandou retratar o dito perseguidor dos
privilegiados da Senhora e o caso se escreveu em pergaminho.
Dentro do
padrão está um crucifixo de pedra dourado e pintado e lavrado com excelentes
molduras, com a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, a de Nossa
Senhora e S. João ao pé da cruz. E, junto à de Nossa Senhora, está a do bem-aventurado
S. Dâmaso, e, junto à do Evangelista, S. Torcato bispo, e, da outra parte da
cruz virada para o altar da Senhora da Vitória, está Nossa Senhora do Rosário,
encostada no alto da cruz, e, ao pé dela, à mão esquerda da Senhora, S. Filipe
Apostolo e, da direita, S. Gualter. Na haste da cruz, por baixo da imagem de
Jesus Cristo, da parte do Poente, está uma lâmina de bronze, e nela esculpidas
umas letras na maneira seguinte:
A honra
◊ de ◊ Deus ◊ ed ◊S.ta ◊ Maria ◊ e por ◊ esta ◊ villa ◊ mais ◊ onrada ◊ ser ◊ e
o poobo ◊ fez ◊ fazer ◊ esta ◊ obra ◊ Per esteves ◊ et ◊ Guimarães ◊ mercador ◊
em ◊ lisboa ◊ filho ◊ d ◊ stevão ◊ Gua ◊
e d ◊ M.ta ◊ Pesta ◊ na e ◊ M ◊ CCC ◊ LXXX ◊ anos ◊ VIII ◊ dias ◊ de ◊ Setembro
◊ m. L. Ao F. Ex ◊
Neste lugar do
Padrão tem feito Deus muitos milagres por intercessão de sua Mãe Santíssima,
muitos estão em pergaminho, que se guardam no arquivo da Colegiada, escritos
por um tabelião chamado Afonso Peres, dos quais direi este, dos mais farei
especial capítulo. — “Senhor. Afonso Peres, tabelião na vossa vila de
Guimarães, faz saber a vossa mercê, que na era de 1380 anos, 8 dias do mês de
Setembro foi posta a cruz na Alvacaria de Guimarães, e adoeceu[1]
aí Pedro Esteves, nosso natural, filho que foi de Estevão Garcia, mercador em
Guimarães, e a qual cruz Gonçalo Esteves, irmão do dito Pedro Esteves, diz que
fora vontade de Deus dar-lhe a entender que fosse a Normandia a Anaflor, e que
a comprasse e a daeese[2]
a este lugar de Guimarães, onde está assentada a par da Oliveira, e quando
estava junto dela assentaram que estava seca, e daquele dia a três dias começou
a reverdecer e deitar ramos, e eu, Afonso Peres, tabelião, isto escrevi”, o
qual milagre tresladei somente do livro, onde estão muitos escritos, que se
guarda no arquivo daquela igreja, para dizer que do dia dele se deu a esta igreja
o título da Senhora da Oliveira, que hoje se observa, porém, o mais certo é
tomá-lo do lugar onde esteve enterrada, pois nele deixou o seu.
Por esta
certidão se mostra que, quando ali se colocou a cruz já havia a Oliveira, da
qual é tradição que viera de junto do mosteiro de S. Torcato e, como neste
lugar não haja outra, se tem por certo, que esta é a mesma do milagre. No tempo
das últimas guerras com Castela se verificou isto melhor, porque os soldados
que para elas iam a desnudaram de seus ramos, tendo por fé que seriam as armas
mais defensivas para a guarda de suas vidas, e, ainda hoje, os que se embarcam
para fazerem suas viagens sem perigo, os levam em sua companhia, para que, como
pombas da arca de Noé, ponham os pés na terra firme, e como têm sido muitos os
milagres, é grande a devoção.
CAPÍTULO 79.º
Da troca que o prior, e cabido fizeram
da igreja de S. Pedro de Azurém com a pedra das esmolas do Padrão.
Já dei notícia
do Padrão em que está recolhida Nossa Senhora da Vitória, e da cruz de pedra
que Pedro Esteves mandou conduzir àquele lugar, trazida de Normandia, ao pé da
qual, por intercessão de Santa Maria de Oliveira, Jesus Cristo seu filho obrou os
milagres que temos visto, foi este Padrão algum dia fechado de grades de pau
fortes, e dentro delas, ao pé da santa cruz, estava uma bacia fechada com
cobertura de ferro, que se fechava à chave, e dentro se botavam as esmolas dos
devotos que vinham de romaria, as quais eram da repartição do cabido, e de
muito rendimento.
Como o natural
de ambiciosos se não dá nunca por satisfeito com o que possui, e aspira a
maiores haveres e se agrada mais do alheio que do próprio, assim o mostraram os
priores desta Colegiada que, levados da ambição nos lucros do cabido, nas
esmolas lançadas nesta pedra, as quais excediam o rendimento dos dízimos da sua
igreja de S. Pedro de Azurém, fizeram com o cabido uma escritura de contrato,
em que lhe largaram o rendimento desta igreja pelo da dita pedra das esmolas,
as quais acabaram com a devoção, e ficaram os priores perdendo, e o cabido
interessou na igreja que lhe deram, que passa de render duzentos mil réis, e o
Padrão só serve para assento de conversações.
CAPÍTULO 85.º
Do lugar em que está plantada a
milagrosa Oliveira de que a Senhora toma o título.
Ordinariamente,
toda a povoação tem um lugar de recreio e festejos de seus habitadores, a que
vulgarmente chamam Praça. Muitas tem a vila de Guimarães, sendo a mais
principal a que está defronte da porta principal da Igreja de Nossa Senhora, onde
está situado o Padrão da Senhora da Vitória e, defronte dele, no meio da dita
praça, para o Poente, está plantada a milagrosa oliveira de que tomou o título
a Mãe de Deus, a qual tem o tronco guardado por um pilar de pedra lavrado, para
mostrar no resguardo e asseio a devoção dos moradores. Está o pilar cercado de
assentos, onde os cavaleiros da vila de contínuo se juntam e sentam para a
conversação, e sucede algumas vezes que, neste fresco e agradável agasalho,
esperam alguns os graciosos borrifos da madrugada, achando-o mais próprio a seu
sono que o calor de suas habitações.
CAPÍTULO 86.
Da compostura da Praça da Oliveira.
A Praça do Padrão da Vitória, em que está plantada a oliveira, é
toda ladrilhada de pedra e, por ser o sítio em que se fundou o novo Burgo, como
dissemos, lhe chamaram Praça Maior, que com igual grandeza fazem majestosa a
Povoação. É esta Praça vistosa pela assistência do Padrão da Senhora e
agradável pelo sussurro das três bicas de água que correm no seu tanque, pela
nobre torre dos sinos da Igreja Colegiada e pela ocorrência de gente que a ela
vem. É fechada pelo Nascente pela Igreja Colegiada, e dali a Poente pelas casas
de seus vizinhos, todas com alpendradas sobre colunas de pedra. De Poente a
Norte se adorna com a Casa da Câmara e Audiências que, estando sobre arcos de
pedra, dão passagem para que desta praça possam passar à outra do peixe, onde
está situada a Igreja de S. Tiago, que foi antigamente Templo de Ceres, no qual
o sagrado apóstolo, derrubando os ídolos, colocou a imagem de Nossa Senhora,
cuja imagem depois foi trasladada para o Mosteiro de Mumadona, que hoje é a
Real Colegiada da Oliveira.
As casas da câmara
e das audiências estão místicas, e ambas fazem frente para a Praça Maior, com
uma galeria de janelas com grades de ferro de encosto pintadas e douradas. São
ambas coroadas de ameias e, no alto de suas paredes, têm o escudo das armas de
Portugal, iluminado. Seria a Praça mais majestosa, se fossem mais liberais em
lhe dar maior terreno.
As citações e transcrições são retiradas de: Torcato Peixoto de Azevedo (Padre), Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, Porto, Typographia da Revista, 1845
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