J. Santos Simões (fotografia de Armindo Cachada) |
Há 55 anos chegava a Guimarães Joaquim António Santos Simões,
para ocupar um lugar de professor de Matemática na Escola Francisco de Holanda,
então chamada Escola Industrial e Comercial de Guimarães. Trazia consigo a
inquietude e a insubmissão de quem não prescindia da liberdade de pensar pela
sua própria cabeça, mesmo em dias de chumbo em que até o pensamento era
rigorosamente vigiado, o que haveria de lhe valer o desemprego e a prisão. Estava-se
em Outubro de 1957 e não seriam necessários muitos dias para se perceber que em
Guimarães algo de novo se movia. Santos Simões foi o mentor de uma profunda
mutação cultural apenas comparável, na história da cidade, à que havia
acontecido na década de 1880, na sequência da criação da Sociedade Martins Sarmento,
de que um dia haveria de ser presidente. No dia 12 de Agosto de 2023
completa-se o centenário do seu nascimento e em 23 de Junho de 2024 fecham-se
os primeiros vinte anos sobre o dia da sua morte. É tempo de lembrar Santos Simões.
Homens como Santos Simões não desaparecem.
Do fundo da gaveta, recupero um texto escrito pouco depois da sua morte.
Testemunho
A imagem mais antiga que dele guardo na memória remonta a um ou dois dias após o 25 de Abril de 1974. Era de tarde, o Toural estava cheio de gente, como nunca antes o tinha visto. Do discurso que então proferiu, ainda recordo a exclamação com que o fechou: “Estamos a caminho do socialismo!”. Não estávamos. Mas ainda hoje lembro o arrepio que aquela intervenção causou no meu espírito de adolescente. Depois disso, por largos anos, só ocasionalmente o meu percurso se cruzou com Joaquim dos Santos Simões, persistindo o fascínio quase intimidante daquela primeira impressão.
Quando, em 1990, foi chamado a fazer parte da Comissão
Administrativa que teve como tarefa reerguer dos escombros a mais emblemática
colectividade vimaranense, a Sociedade Martins Sarmento, consumava-se o
reconhecimento da sua figura extraordinária pela cidade que amava. Homem de
profundas convicções políticas de esquerda, mas habituado ao diálogo com os que
pensavam de maneira diferente da sua, recebia nas mãos os destinos daquela que
era então a mais conservadora, elitista e fechada instituição de Guimarães. Em
Novembro desse ano, houve eleições para a direcção da SMS, e Santos Simões
convidou-me para integrar a lista que encabeçou. Tinha fama de homem de
relacionamento difícil: ainda hoje recordo a observação de alguém que nos
conhecia bem a ambos e que me assegurou que não iria ficar na SMS mais de três
meses. Enganava-se. Iniciava-se aí a minha convivência quase diária com Santos
Simões, que perdurou até ao seu desaparecimento.
Desses primeiros tempos guardo a memória da forte
impressão que me causou a sua imensa energia e a sua permanente disponibilidade
para o trabalho. Assumiu com braço firme o leme da nau que, naqueles dias,
navegava em maré tormentosa, conduzindo a Sociedade Martins Sarmento numa revolução
tranquila, em que todos os passos de construção do presente eram dados com um
respeito quase religioso pela memória da instituição. Nesses tempos, o que mais
me fascinava na sua figura era o modo como conciliava a sua imensa cultura com
a humildade do eterno aprendiz, com a sua permanente abertura para o que era
novo. Foi assim quando, logo em seguida, entrou na SMS o primeiro computador. Espantou-me
o modo como aquele quase septuagenário se mostrava entusiasmado com a ideia de
poder dispor de uma ferramenta que lhe permitia escrever um texto desde o
rascunho inicial até à paginação para impressão tipográfica, sem que tivesse
que ser reescrito em cada fase do processo, como sucedia no tempo (que ainda
era aquele) da máquina de escrever. Lembro a disponibilidade para aprender
daquele mestre de várias gerações: sentava-se ao meu lado, enquanto eu
transcrevia os textos para o volume 100 da Revista de Guimarães, atento a todos
os passos e fazendo anotações meticulosas num código que só ele entenderia. Não
passou muito tempo até que comprou o seu primeiro computador e, desde então, a
maior parte dos seus dias passou-a em frente de um teclado e de um monitor.
Ao longo desses anos, o trabalho que desenvolveu com os que
escolheu para o acompanharem fez com que o seu nome adquirisse o direito a ser
gravado a traço firme nos anais da Sociedade Martins Sarmento ao lado de
figuras tutelares como José Sampaio, Domingos Leite Castro, Eduardo de Almeida
ou Mário Cardozo. Quando o corpo já dava sinais de fragilidade, não dava
mostras de abatimento: o trabalho transfigurava-o, os desafios
rejuvenesciam-no. Enquanto pôde, resistiu à doença, aos médicos e à medicina. O
tempo e as enfermidades iam-lhe vergando o corpo, mas não o espírito, que dava
mostras de uma eterna vitalidade.
Houve um dia em que a doença foi mais forte, e ele quase
morria uma primeira vez. Os vaticínios eram os piores, mas não demorou muito
para que estivesse de volta, com a energia de sempre. Com uma eficácia
impressionante, organizou e dirigiu então o programa das comemorações do
centenário da morte de
Foi por esse tempo (Novembro de 1999) que o Conselho
Cultural da Universidade do Minho o homenageou, em reconhecimento dos serviços
que prestou à Universidade. Do discurso que proferiu então, recordo as últimas
palavras:
Não sei se estas palavras seriam adequadas a um testamento ou a uma qualquer declaração de últimas vontades, mas a verdade é que ainda não estou a pensar em morrer por uma simples razão: tenho muito que fazer!
Por esta vez, parecia que se enganava. Não passou muito tempo até que desse entrada no Hospital de S. José, em Fafe, em estado muito grave. Disseram-nos que nos preparássemos para o pior. Algum tempo depois, foi transferido para o Hospital de Coimbra, onde o seu filho o poderia acompanhar mais de perto. Disseram-nos que nos preparássemos para que não regressasse ao comando da SMS. Enganaram-se nos prognósticos: não passaram muitos dias até que me mandou um recado: queria que lhe telefonasse. Do outro lado da linha, disse-me que era tempo de renovar junto da Universidade do Minho a proposta para o estabelecimento de um modelo de colaboração permanente entre as duas instituições. Afinal, eram verdadeiras as suas palavras: não podia morrer, porque ainda tinha muito que fazer. Num dos dias seguintes, o correio trouxe correspondência de Coimbra. Dentro do envelope vinha o material para o número seguinte do Boletim da SMS — que estava apenas um pouco atrasado—, igual ao de sempre, apenas com a diferença de, para a maqueta da paginação, ter utilizado adesivo hospitalar em vez da fita-cola do costume…
Dessa sua experiência de quase-morte escreveria, alguns
meses mais tarde, um dos mais belos textos que dele li, a perturbante e
comovedora novela “O Senhor da Cana Verde”.
Nos anos que se seguiram, continuou a dirigir a Sociedade
Martins Sarmento, viu concretizar-se a cooperação institucional entre a SMS, a
Universidade do Minho e a Câmara Municipal de Guimarães, com a criação da Casa
de Sarmento — Centro de Estudos do Património, perseverou e viu erguer-se o
monumento a Gil Vicente, impulsionou e inaugurou o Museu da Cultura Castreja,
assistiu à construção da nova casa de acolhimento e centro de interpretação da
Citânia de Briteiros, escreveu e publicou não sei quantos livros, envolveu-se
numas quantas polémicas, viu antecipar-se-lhe na partida o seu companheiro de
todos os dias na SMS,
A resistência era um dos traços mais marcantes da figura
de Joaquim António dos Santos Simões. Resistiu até aos limites das suas forças.
Na manhã de quarta-feira, dia 23 de Junho, faltou pela primeira vez a uma reunião
da Direcção da Sociedade Martins Sarmento. Ao início da tarde chegava a notícia
da sua partida.
Na intervenção na homenagem que a Universidade lhe fez em
1999 asseverou que “para descansar temos uma eternidade”.
Agora, lá está ele na eternidade, para onde partiu como
quem se recosta para repousar um pouco.
Estará descansar? Eu, que estou certo de que o conheci
bem, duvido.
A estas horas, o Santos Simões deve estar a organizar a
eternidade.
Guimarães, 28 de Junho de 2004
António Amaro das Neves
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