A Equipa do Rei, Cartoon de Miguel Salazar. |
OUTIVA, s. f. Falar de outiva (V. Ouvida); pelo que ouviu dizer: “mas como as tratais de pura outiva, e conforme à informação” Feo, Trat, f. 111. v. e fig. imprudentemente. §. Leão, Orig. diz, que é falar desentoadamente. §. Aprender de outiva: i. é, ouvindo, e sem ler, nem princípios, como o músico de orelha. Barreto, Pratica. (Dicionário da Língua Portuguesa, Moraes)
Uma destas noites, recebi de um
amigo uma mensagem enigmática. Rezava assim:
Que andas tu a fazer? Então abandonaste a “história factual” para te dedicares a fontes mal frequentadas, como são os “jornais panfletários”? Não tens vergonha? Devias ser um “enxertado de história”, isso sim, gente com sapiência... enfim...
Reconhecia a ironia, sabendo que
era suposto perceber algo completamente diferente do que estava a ler, mas não
fazia a mínima ideia de onde viria aquilo a que o meu amigo se referia. Tive
que pedir que desencriptasse a mensagem. A resposta veio com um link
para um texto de um velho conhecido, Raul Rocha (RR), publicado no Tempo de
Jogo, um jornal desportivo vimaranense de publicação online, de onde
transcrevo o seguinte.
Não li ainda os textos, a não ser naturalmente aquele de que sou autor, mas irei fazê-lo com o maior dos prazeres. É natural que não concorde com alguma das visões publicadas. Costuma-se dizer que quando há dois juristas a apreciar uma contenda, há duas opiniões jurídicas. Também na história, por vezes, sucede. Particularmente quando a investigação não privilegia a história factual, mas a pré-história das reuniões formais e informais, das notícias colocadas na imprensa panfletária a assinalar o protagonismo deste ou daquele.
Pouco importante. A memória testemunhada que ouvi daqueles que viveram os anos 1920 sempre me ensinou que foi António Macedo Guimarães, da “Chapelaria Macedo”, o primeiro líder na formação do Vitória. Nada importará se no registo formal assim não sucedeu. Até ao “Benlhevai”, tudo foi pré-história e informalidade.
O texto, com uma pitada de absoluto nonsense, no período com que fecha o primeiro parágrafo, remete para o lançamento do livro “O Clube d'O Rei — 100 anos, 100 cartoons", de Miguel Salazar, que acabava de ser lançado, onde colaboro, tendo tido o privilégio de apresentar, e refere-se à parte que nele me coube escrever. Uma notícia dolorosa, que me abalroou logo a seguir, impediu-me que lhe voltasse a dar atenção, até que hoje um outro amigo me perguntou se eu ia dizer algo ou se ia “deixar a coisa assim”.
Direi.
Começo por registar que há dois
assuntos sobre os quais não admito discutir com Raul Rocha — engenharia de minas,
de que confesso nada saber, e historiografia, assunto sobre o qual RR percebe
tanto como eu percebo de engenharia de minas, apesar de, por analogia, se
atribuir a condição de historiador, como se depreende da afirmação de que “também
na história sucede” o que se costuma dizer do debate jurídico: “quando há dois juristas a
apreciar uma contenda, há duas opiniões jurídicas”. Convertida a analogia, substituindo
os juristas por historiadores, eis RR a afirmar-se historiador. Pela parte que
me toca, prometo que jamais direi que sou engenheiro.
Raul Rocha confessa candidamente que não leu os textos, mas diz
que não concorda com eles. Ou seja, assume que fala daquilo que não conhece. E, com base no que confessadamente ignora, porque
não leu, não se exime a dizer que não concorda com o que desconhece e parte para a crítica da
metodologia da minha investigação, que ele obviamente não sabe qual seja, porque não leu.
Diz que “a investigação não privilegia a história factual”. Na
verdade, o investigador não fez outra coisa, já que a matéria da história se
desenvolve no território da factualidade e porque, a partir de fontes documentais que recolhe, critica e analisa, procura contar o que realmente aconteceu. Logo a seguir, diz que apenas importa o
que ouviu “daqueles que viveram os anos 1920”. Ou seja, o que vale é o que
ouviu dizer, ou, provavelmente, o que reteve na memória do que acha que ouviu contar, muitas décadas
depois de ter acontecido, e não o que dizem as fontes históricas coevas dos
factos que se descrevem. Portanto, para RR, a verdadeira história é a que se
escreve de outiva, aquela que se faz de ouvir dizer.
Não a leu, mas sabe, certamente pelo método infalível da
adivinhação, que a minha investigação privilegia “notícias colocadas na
imprensa panfletária a assinalar o protagonismo deste ou daquele”. Sendo assim,
fica um mistério capitoso que urge decifrar: quem colocou tais notícias, em tal
imprensa, a mando de quem e para assinalar que protagonismo? E, já agora, quando?, uma vez
que naquele tempo, o futebol não era atividade susceptível de dar grande protagonismo
a quem quer que fosse. Antes pelo contrário, era geralmente malvisto, por ser coisa de
rapazio turbulento e desocupado. Pretenderá RR sugerir que as notícias eram plantadas para
dar protagonismo ao filho do político republicano e democrata vimaranense
Mariano Felgueiras, certamente por ser filho de quem era? Se assim foi, por
que artes tais plantações foram parar ao jornal onde se publicavam as mais
violentas catilinárias contra o então presidente da Câmara Municipal de Guimarães,
o muito monárquico, antidemocrático e ultramontano Ecos de Guimarães?
Portanto, em história, o que vale é o que Raul Rocha ouviu dizer, e nada lhe importará se “não sucedeu” como ouviu, ou julgou ouvir. E decreta, definitivo e peremptório, que, “até ao “Benlhevai, tudo foi pré-história e informalidade”, que é o mesmo que dizer que as comemorações do centenário começaram adiantadas mais do que um ano, uma vez que, a crer no que diz, o Vitória Sport Clube só nasceu no dia 27 de Janeiro de 1924.
Mas RR já disse coisas bem diferentes sobre o mesmo assunto.
Raul Rocha é o autor do livro “Vitória — 75 anos de História”, publicado durante as comemorações do VSC, onde leio — porque, ao contrário de RR, escrevo sobre o que já li — logo no segundo parágrafo do primeiro capítulo:
O ano de 1922 consagrado na história do Clube como ano da fundação representa, quando muito, o ano da constituição da sua primeira direcção e da sua filiação na Associação de Futebol de Braga […]
E, no parágrafo seguinte:
Ou seja, se a A. F. Braga se tivesse constituído em 1920 ou 1921, provavelmente a data da fundação do Vitória teria, também, sido registada um ou dois anos antes.
De onde se depreende que, segundo o eminente historiador de outiva dos fastos vitorianos, a primeira direcção não é a de 1924, mas uma outra de 1922, cuja composição não indica e que até poderia ter sido de 1921 ou 1920, se a Associação de Futebol de Braga se tivesse instituído nesses anos (aqui, RR pressupõe, erradamente, que o VSC nasceu para ser fundador da AFB, o que nunca foi). Logo, até estamos de acordo: antes da direcção presidida pelo chapeleiro Macedo, o Vitória teve outra, digo eu e disse RR antes de mim... E, se assim é, eu não sei o que lhe doeu tão fortemente, a ponto de o levar a afirmações tão ligeiras. Tendo a admitir que a dor lhe virá de eu ter classificado o livro de Miguel Salazar como o melhor livro de história do Vitória Sport Clube que até hoje se publicou. Mas eu nem sequer disse qual é o pior…
Posto isto, vamos, em marcha atrás, aos factos e aos documentos que demonstram que a primeira direcção do VSC não é a que até aqui se julgava:
Corpos gerentes para 1924 ASSEMBLEIA GERAL Presidente — Alberto Sousa Pinto Vice-Presidente — Avelino Ferreira Meireles 1.º Secretário — Afonso Lerves de Macedo Dória 2.º Secretário — João de Freitas DIRECÇÃO Presidente — António Macedo Guimarães Vice-Presidente — Emílio Pereira de Macedo 1.º Secretário — Luís Gonzaga Leite 2.º Secretário — Luís Filipe Gonçalves Coelho Tesoureiro — Domingos André de Magalhães Vogais — Heitor Godofredo R. de Almeida e Eduardo Pereira dos Santos. CONSELHO FISCAL Álvaro Ferreira de Brito Alberto Ribeiro Pinheiro António Lage Jordão A Razão, 23 de Dezembro de 1923 Facto n.º 2: a assembleia geral eleitoral foi formalmente convocada no dia 30 de Novembro de 1923. A convocatória foi assinada pelo secretário da assembleia geral, Luís Gonzaga Leite. Vitória Sport Club ASSEMBLEIA GERAL São convidados os sócios deste Clube, a reunirem na sala das sessões da Associação Artística, Rua Gil Vicente, no dia 9 de dezembro pelas 10 horas para se tratar da eleição dos corpos gerentes para o ano de 1924. Se não comparecer número legal de sócios ficará a sessão adiada para o dia 16, pelas mesmas horas, funcionando com qualquer número de sócios. Guimarães, 30 de Novembro de 1923. O Secretário, Luís Gonzaga Leite. A Razão, 30 de Novembro de 1923 |
Crónica Sportiva
Facto n.º 6: no dia 12 de junho, reuniu formalmente a Assembleia
Geral do Vitória, na sequência de incidentes durante um jogo com o Sport Club
de Vizela.
Vitória Sport Club
Em assembleia geral de Grupo Vitória Sport Club, realizada a 12 de junho p. f. [sic], foi pelo snr. José Vieira Campos de Carvalho, capitão geral do “Vitória Sport Club”, apresentada a seguinte proposta:
“Que para desfazer mal entendidos que pudessem nascer do conflito havido, entre os espectadores e os jogadores de Vizela, quando da sua visita a esta cidade, e abalar assim a solidariedade “sportiva” entre o “Vitória Sport Club” e o “Sport Club de Vizela”, fossem nomeados dois delegados, cuja missão seria a de irem apresentar, junto da Direcção do grupo “Sportivo” da vizinha povoação, os seus protestos de franca solidariedade e convidá-lo a jogar novamente com o Grupo Vimaranense”.
A proposta foi aprovada por unanimidade, sendo arbitrado pelo sr. Luís Filipe Gonçalves Coelho que esta parte da acta fosse do conhecimento público, visto que assim ficaria ilibado de qualquer culpa o “Vitória Sport Club”. […]
Facto n.º 7: a 19 de Junho de 1923, o jornal A Razão, publica
uma crónica em que refere expressamente a “direcção do Vitória”.
Facto n.º 8: No dia 1 de Fevereiro de 1923, o jornal a Voz de
Guimarães, torna pública a lista dos corpos sociais do Vitória, que será republicada
no Ecos de Guimarães de 18 do mesmo mês.
Foot-Ball
Presidente — José Ribeiro Jorge
1.º secretário — Luís Gonzaga Leite
2.º secretário — Arlindo Leite Ribeiro
DIRECÇÃO
Presidente — Mariano Fernandes da Rocha Felgueiras
1° secretário — Avelino Augusto de Araújo Dantas
Tesoureiro — António Antunes de Castro Júnior.
Vogais — Joaquim António Antunes de Castro e Afonso Pires.
CONSELHO FISCAL
Emílio Ferreira de Macedo
Luís Rodrigo Graça
José de Freitas Neves
Capitão Geral — Avelino Augusto de Araújo Dantas
Facto n.º 9: O primeiro jogo do Vitória Sport Clube realizou-se
no dia 17 de Dezembro de 1922.
Foot-Ball
Realizou-se domingo passado como havíamos anunciado, pelas 12 horas, no campo da Atouguia, um match entre o Vitória Sport Club, desta cidade, e uma Selecção Poveira um tanto estropiada. Tínhamos anunciado o match com o “Maçarico Sporte Club”, da Póvoa de Varzim e apareceram à última elementos de todos os clubes da referida vila, os quais vencera por 4-1. Foi muito concorrido.
Facto n.º 10: A mais antiga referência ao Vitória Sport Clube até
hoje encontrada foi publicada no jornal Ecos de Guimarães, no dia 17 de
Dezembro de 1922.
De onde se conclui, e se demonstra documentalmente, que:
O Vitória Sport Clube apareceu perto do final de 1922, sem que se lhe possa fixar uma data de nascimento. O jogo mais antigo que se lhe conhece aconteceu no dia 17 de Dezembro daquele ano. Não sabemos como foi instalado, mas é certo que teve órgãos sociais a funcionar formal e normalmente ao longo do ano de 1923, provavelmente eleitos ainda em 1922. A primeira direcção, constituída por gente muito moça, foi presidida por Mariano Fernandes da Rocha Felgueiras, com Luís Gonzaga Leite nas funções de secretário da assembleia geral. Há notícias da actividade da sua direcção e da realização de várias assembleias gerais ao longo do ano, de que se lavraram actas que, ou foram destruídas, ou andam em paradeiro desconhecido. Em Novembro de 1923, o Vitória, já inscrito na Associação de Futebol de Braga (que vivia de casa e pucarinho com o Sporting de Braga), de que não foi fundador, já estava a disputar o Campeonato do Minho. No dia 9 de Dezembro, em assembleia geral convocada pelo secretário Luís Gonzaga Leite, foi eleita a direcção presidida por António Macedo Guimarães, vimaranense amante do futebol a quem o Vitória muito deve.
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