Pinheiro levantado, estudantes em festa.

 

O Pinheiro anunciador das Festas  Nicolinas de 2021.

A propósito do cancelamento do cortejo da entrada do Pinheiro que anuncia as festas seculares que os estudantes de Guimarães dedicam a S. Nicolau, muito se tem dito, invocando, muitas vezes em vão, a tradição nicolina. A quente, compreendo o alvoroço e os apelos mais ou menos expressos a pronunciamentos contra os poderes que teriam decretado a proibição do cortejo. A frio, nem por isso.

No passado, houve várias tentativas para proibir, não as festas, mas algumas das práticas, como o uso de máscaras, o toque de caixas e bombos de madrugada, a Roubalheira. Os estudantes nunca acataram as proibições. Mesmo a decisão de não realizar as Roubalheira, quando foi tomada, foi por determinação dos estudantes. Porque ninguém proíbe as Nicolinas. Esta é a tradição.

Que eu perceba, não houve, nem haverá, qualquer proibição dos festejos. A Câmara apenas seguiu a recomendação da Protecção Civil e do senso comum, não emitindo licenças para o cortejo. Compreendo que não tinha outra escolha, a não ser que quisesse seguir hoje o caminho mais fácil, dispondo-se a arrostar, amanhã, com imputações de responsabilidades pelo agravamento da crise pandémica — que acontecerá, independentemente de haver ou não cortejo do Pinheiro. Era preciso estar muito desatento aos sinais para se julgar que a decisão poderia ser outra. Trata-se de uma decisão politicamente compreensível e socialmente responsável. Uma sociedade não deveria ser movida pelo medo. Infelizmente, é o que está a acontecer. Ao não emitir licenças para o cortejo, a Câmara faz o que pode para evitar o alarme social. Se o executivo municipal estivesse pintado de outra cor, não tomaria decisão diferente. Não faz sentido cavar trincheiras numa guerra em que estamos todos do mesmo lado.

Estes tempos são complicados e vão continuar a ser, não tanto pela realidade da pandemia, mas mais pela percepção da pandemia. À luz da história das epidemias, esta que vivemos tem que ser classificada como ligeira, mas o alarme social, exponenciado pela nova ordem comunicacional, força a que seja combatida com meios manifestamente excessivos. É como ir aos pardais a tiros de canhão. Não é uma gripezinha, como dizia o outro, mas é capaz de já haver mais gente a morrer da cura do que da doença.

O levantamento do Pinheiro é o número das Nicolinas que mais se modificou, especialmente ao longo das últimas décadas, não tanto na forma — continua a ser um cortejo que acompanha entrada a na cidade de um pinheiro de bom tamanho puxado por juntas de bois, para ser levantado num largo da cidade, anunciando ao mundo que os estudantes de Guimarães estarão em festa nos primeiros dias de Dezembro — mas no significado. Na sua origem, era acompanhado apenas pelos estudantes de latim de Guimarães, que não eram não mais do que umas dezenas, porque mais não havia, chegando a ser menos os estudantes do que os bois que puxavam o mastro. A partir do ressurgimento das festas, em 1895 e, logo a seguir, da criação do Liceu, em 1896, o número dos que estudavam latim em Guimarães aumentou, mas continuava a ser muito diminuto. Ao longo da primeira metade do século XX, as Festas Nicolinas foram apropriadas pelos estudantes do Liceu. As festas eram deles: os velhos assistiam à passagem do cortejo carregados de pensamentos nostálgicos sobre o tempo em que eram eles que acompanhavam o pinheiro ao som dos seus zabumbas, como se percebe por este trecho de uma notícia sobre o Pinheiro publicada em 1899 no jornal Vimaranense:

A alguns “velhos” ouvi de comoção dizerem com lágrimas de enternecimento na voz que a alegria dos rapazes os entusiasmava e electrizava fazendo-os perder a cabeça, e que a custo se continham, para não lançarem mão de um zabumba e saltarem para o meio deles a fundir a sua “velhice” ao fogo entusiasta da sua alegria e juventude.

A partir de 1953, assistiu-se a uma progressiva apropriação do Pinheiro pelos Velhos, que se consumou na década seguinte. Quando entrei para o Liceu, no ano lectivo de 1972/73, o Pinheiro já era território sagrado dos velhos: só eles podiam tocar durante o cortejo e os novos não passavam de meros espectadores que esperavam pacientemente a sua hora, que chegava depois do Pinheiro levantado: esse era o momento em que começava a festa dos estudantes, com caixas e bombos passarem para as suas mãos. Só depois do 25 de Abril, com o alargamento e a unificação do ensino secundário, é que o cortejo do Pinheiro se transformou numa manifestação de massas, verdadeiramente democrática, porque aberta a todos, novos e velhos, rapazes e raparigas, de todas as escolas. É esta sua dimensão multitudinária que justifica, em 2021, a necessidade de contenção, para que Guimarães não volte a ser notícia por más razões.

E não venham dizer que, em casos semelhantes, se fez de outra forma. Porque não há casos semelhantes. Nenhum evento é comparável às Festas Nicolinas.

Esta é a noite em que Guimarães não dorme. Assim será, queiram ou não, a noite de 29 para 30 de Novembro de 2021, mesmo sem pinheiro para levantar, porque este ano ele se levantou mais cedo.

Por estes dias, tenho assistido a afirmações e movimentações inauditas, sempre a coberto da defesa da tradição, nomeadamente, os grupos que se formaram nas redes sociais, para promoverem cortejos do Pinheiro alternativos. E eu pergunto, como muitos perguntarão: com que direito? Um dos elementos mais originais das Festas Nicolinas é o serem organizadas por uma comissão composta por estudantes do secundário. E por mais ninguém. As festas serão o que a comissão decidir, mesmo que decida mal, como algumas vezes tem acontecido. Haja respeito pelo trabalho daqueles rapazes.

Também tenho visto defender, como forma de retaliação contra a Câmara, que o Pregão deste ano não seja lido no edifício onde o Município tem a sua sede. Pelos vistos, há quem ache que a tradição de ler o pregão em Santa Clara é uma forma de reverência dos estudantes à Câmara e a quem a dirige. A indignação, quando caldeada com doses substanciais de ignorância, pode servir para umas aparições vistosas no Facebook, mas não é boa conselheira. O Pregão não é lido na Câmara, mas no antigo Liceu de Guimarães, que ali funcionou desde a sua fundação, em 1896, até à mudança, em 1961, para o edifício onde hoje está a Escola Secundária Martins Sarmento. Não o fazer será desrespeitar a tradição e a memória de sucessivas gerações de Nicolinos que por lá passaram.

Esta noite não haverá entrada do Pinheiro na cidade, porque o Pinheiro já entrou. Está resolvido o problema das licenças. Mas haverá festa, porque para a sua festa, os estudantes de Guimarães nunca pediram licença.

Hoje há Pinheiro, com as cautelas possíveis e a irreverência do costume.


Comentar

1 Comentários

Sempre interventivo e esclarecedor. Abraço, Amaro