O Toural após as Roubalheiras de 2021. Foto de José Marinho/Jornal de Notícias |
As Roubalheiras, antigamente também
conhecidas como o Rapto das Tabuletas são um dos números mais recentes do
actual programa das Festas Nicolinas (foram introduzidas no ressurgimento de
1895), intermitentes (ao longo do século XX, muitos foram os anos em que não
constaram no programa das Nicolinas) e controversas. Suspensas, pela última
vez, em 1973, foram retomadas em 1994, por uma comissão de festas presidida pelo
saudoso Rui Dias de Castro, o Chinês, que lhes introduziu novas regras, no sentido de evitar
que os verdadeiros larápios se juntassem à festa, à imagem do que algumas vezes
acontecera no passado, dando argumentos à censura social que justificou a sua
supressão. Passaram então a ter lugar em data incerta e sigilosa, dando-se início
ao período mais longo de realização consecutiva.
As Roubalheiras resultam da
adaptação ao meio urbano de uma antiga tradição do mundo rural minhoto, que
acontecia nas nossas aldeias por altura dos festejos de S. João e, em
particular, e S. Pedro. O 29 de Junho era o dia dos atrancamentos, em que
os caminhos eram atrancados com alfaias agrícolas, vasos, utensílios e animais
domésticos, desviados dos seus lugares habituais por bandos de rapazes. Naquela
madrugada, não era raro os vizinhos da aldeia serem acordados em sobressalto
pelos rebates do sino — ia-se ver, e era a corda do sino que estava presa aos arreios de um
burro ou aos cornos de um boi...
As roubalheiras das Nicolinas inspiraram-se
naquela brincadeira de rapazes de aldeia. Depois das posses voluntárias do uso,
os estudantes saíam pelas ruas para posses não-autorizadas, carregando escadas
e armados de alicates e chaves de parafusos, que tinham deixado a guardar na
casa da Senhora Aninhas. Retiravam tabuletas de lojas, repartições de serviços,
médicos ou advogados, e recolhiam tudo ao que encontravam à mão de semear (vasos,
mesas, bancos, cadeiras, carros de mão, tapetes, animais de capoeira, as próprias
capoeiras, se fossem transportáveis…), que colocavam em volta do Pinheiro. E
era, ou deveria ser, apenas um divertimento inofensivo, que tinha sempre um
lado humorístico, de que não faltam exemplos: a cabeça da estátua de Afonso
Henriques amanhecia coberta com uma cartola que servia de cartaz à Chapelaria
Lemos, os seios da “Maria da Fonte” do fontanário do Toural eram escondidos por
um soutien surripiado num estendal de roupa, tabuletas retiradas de um lugar
apareciam afixadas noutro, fazendo, por exemplo, com que a oficina de um
notário passasse a anunciar uma parteira, uma sala de aula do colégio da
Senhora da Conceição podia ser transplantada para o meio do Campo da Feira.
Apesar do nome, nas Roubalheiras apenas havia uns objectos que mudavam
de lugar. Os seus donos sabiam onde os haviam de ir procurar (somente um ou
outro frango ou mesmo um peru, não eram devolvidos aos seus donos, acabando
assados no forno do padeiro ou estufados no arroz de cabidela com que, ao fim
da noite, os estudantes reconfortavam os estômagos). No fim de contas, era uma
brincadeira respeitosa e tolerada, em que havia o cuidado de não causar danos e
de assegurar que os proprietários dos bens desencaminhados retomariam a sua
posse. O problema é que aquela noite de furtos simulados e festivos era também vista como uma boa oportunidade de trabalho
para os profissionais da subtracção de propriedade alheia em proveito próprio,
o que justificou a sua impopularidade e levou a que um dos restauradores dos
festejos nicolinos em 1895 e, seguramente, a figura que melhor encarna a tradições
e a alma nicolina, Jerónimo Sampaio, escrevesse, em 1923, que este é um dos números
que “não merecem aplausos a
gente de senso e boa razão”.
O seu ressurgimento em 1994 estabeleceu a responsabilidade da Comissão
de Festas na prevenção de danos e de apropriações indevidas (impondo sigilo
quanto à data em que acontece, acompanhamento pelas autoridades e comunicação por
escrito aos proprietários dos bens supostamente roubados).
Ao que se percebe, a Comissão de Festas deste ano, não terá
honrado o compromisso que vigora desde 1994, tendo sido alvo de uma
participação à PSP, por presumível responsabilidade no arrombamento de uma
arrecadação da Escola Secundária Martins Sarmento, cuja direção anunciou o
cancelamento da Posse e da leitura do Pregão que iriam acontecer naquele
estabelecimento de ensino. Quanto à apresentação da queixa, a direcção da
Martins Sarmento fez o que tinha fazer, em presença dos danos provocados em
bens que tem à sua guarda; já quanto ao cancelamento dos números na escola, fico com sensação
de que poderá estar a castigar mais as festas, que são seculares, de todos os
estudantes e da cidade, do que os poucos que, provavelmente por ignorância dos
limites que deveriam respeitar, terão desobedecido às boas práticas que a
tradição lhes impunha.
As Festas Nicolinas são únicas, mas o que têm de mais invulgar é
o serem organizadas, ano após ano, por uma comissão que é eleita apenas dois
meses antes de se iniciarem, integrada por jovens estudantes do ensino
secundário, a quem se colocam exigências para as quais muito dificilmente
estariam preparados.
Haverá que repensar a Comissão, de modo a que os que a integram
saibam bem no que se estão a meter. Em primeiro lugar, precisam de saber o que
são as Festas Nicolinas e tudo o que as envolve. Há que voltar a ter regras
claras sobre o que é necessário para se integrar a Comissão de Festas, porque,
aparentemente, nestes últimos anos há algo que se tem vindo a perder.
Aparentemente, deixou de estar em vigor a regra das três matrículas.
No tempo em que frequentei o Liceu, ali eram leccionados o curso geral (actual
3.º ciclo) e o curso complementar (actual ensino secundário) e um estudante só
poderia integrar a comissão a partir da terceira matrícula na escola. Essa
norma deveria ser transposta e clarificada para a realidade actual, de modo a
assegurar que quem organiza a festa já teve tempo suficiente para se identificar
com o seu espírito e a sua tradição, que não é simples, nem linear.
Ao que se vê, também já não se controla se quem se candidata à Comissão
ainda é aluno do ensino secundário. Parece-me incontroverso que os que se inscrevem
no ensino pós-laboral, depois de terem frequentado o ensino regular sem o
completar, passam a integrar a categoria de velhos nicolinos. Logo, não
são — não deveriam ser — elegíveis para a Comissão, que só deve ser constituída
por estudantes com idade para se inscreverem no ensino secundário. Também aqui
são necessárias regras claras.
Por outro lado, já era tempo de se pôr um travão às violentas praxes
alcoólicas a que se submetem os membros da Comissão, em especial as infames “multas”
pagas com a ingestão forçada de aguardente quando, nos peditórios, não atingem
os objectivos que lhes são traçados. São práticas como estas que fazem com que
muitos vimaranenses, parte deles de famílias com uma forte tradição nicolina, não
permitam que os seus filhos se integrem de um modo mais activo na organização
das festas.
Dito isto, voltarei ao
que já digo há muito tempo. As Nicolinas são uma festa única, por muitas
razões. Um dos principais traços da sua originalidade é o de, apesar de serem tão
complexas e multitudinárias, continuarem a serem organizadas por um pequeno grupo
de jovens estudantes com idades que se situam entre os 15 e os 18 anos. E assim
continuará a ser.
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