Vista geral de Guimarães no início da segunda metade do século XIX, Francesco Rocchini, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Prova a sépia, pintada artificialmente de verde sobre o verde natural. |
A vista geral fotográfica de
Guimarães mais antiga que se conhece está na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, num álbum que pertenceu à imperatriz Teresa Cristina, consorte de
Pedro II do Brasil. A data será anterior à década de 1860. O fotógrafo,
Francesco Rocchini, obteve-a a partir da meia encosta do monte Cavalinho, numa
perspectiva de sul para norte, com o castelo ao fundo. Veem-se cinco torres de
igreja, duas das quais já lá não estão, S. Sebastião e S. Dâmaso, e uma outra
ainda sem qualquer torre, a do Toural. O comboio ainda não tinha chegado a
Guimarães, a avenida Afonso Henriques não existia. Na desembocadura da rua
Caldeiroa, está a antiga Torre da Alfândega, mas sem a altura a que a elevaram
na década de 1930. O burgo medieval aparece embutido numa paisagem emoldurada
de verde. Com o tempo, a moldura foi paulatinamente substituída por uma
cercadura de betão. Era o progresso, diziam aqueles que alimentavam a ambição
de tornar Guimarães numa grande metrópole.
Quando preparava o Plano Director
de Guimarães, o arquitecto Fernando Távora, numa memorável conferência no
Convívio, peregrinou pela história urbana de Guimarães, desde que nasceu, por
iniciativa de uma mulher, Mumadona Dias, até àqueles dias de Novembro de 1980.
No final, centrou-se no processo de crescimento que a cidade tinha iniciado nas
três décadas anteriores, espatilhando o espaço de intramuros que, fechado sobre
si próprio, acabaria por se assemelhar a uma múmia de museu. Numa cidade
onde já se erguiam torres mais altas e mais coloridas que a torre do castelo,
impunha-se traçar um programa de ordenamento para evitar que a cidade se
transformasse num monstro de cimento armado, com uma amostra medieval
para turistas. Não seria fácil a tarefa de quem tinha tal incumbência entre
mãos.
Fernando Távora tinha uma visão
para a cidade, que classificava como a glória do homem, assente
numa ideia que seria o fio condutor do processo de requalificação urbana que traria
a Guimarães o reconhecimento como Património da Humanidade (algo que, por
aqueles dias, nem o mais optimista ousaria imaginar): o desenvolvimento da
cidade deveria respeitar o seu passado e, acima de tudo, aqueles que a habitam.
A estratégia de requalificação do Centro Histórico de Guimarães assentou no
princípio do envolvimento dos cidadãos residentes, procurando transformar a obra
de alguns em obra de todos e para todos e seguindo um modelo que procurava
fixar os moradores. Mais do que um plano de requalificação urbana, seria um processo
de regeneração e de preservação da vida urbana, com um programa que era arquitectónico
e urbanístico, político e cívico.
O processo de regeneração urbana do
Centro Histórico de Guimarães, que tornaria Guimarães num caso de estudo
internacional, pelo modo como conseguiu respeitar o passado sem o transformar em
relíquia numa redoma, ao mesmo tempo que cuidava dos seus habitantes,
acrescentando qualidade ao seu modo de vida, assentava no pensamento, na visão
e na estratégia que Fernando Távora delineou. A cidade de Távora foi pensada
não como uma flor de estufa para usufruto de turistas ocasionais, nem como playground
para animação nocturna, mas sim, simplesmente, para se viver nela.
Ao longo das últimas décadas,
pensamento, visão e estratégia foram-se tornando escassos na política de cidade
de Guimarães. Parece confundir-se desenvolvimento com crescimento, aposta-se em
soluções ditadas pelo imediatismo e pelos resultados a curto prazo, cede-se à
pressão das redes sociais, sem se questionar e sem se escutar quem questiona. Nos
tempos que correm, parece não haver uma ideia para Guimarães, mas percebe-se
que há muitas ideias, algumas delas dificilmente conciliáveis entre si.
Por muito que se afirme o comprometimento
com a sustentabilidade ambiental, vertida em discursos voláteis e em
candidaturas a cidades verdes e outros galardões ecológicos, a exaltação do
verde acaba quase sempre por ser esmagada pelo fascínio do betão, aqui e ali disfarçado
com verduras.
Boa parte do arvoredo que, na
fotografia de Rocchini, aconchegava o centro urbano de Guimarães, foi derrubado
nos últimos anos. Primeiro, foi o miolo entre a Caldeiroa e Camões, onde
poderíamos ter um magnífico parque urbano, sacrificado para dar lugar a um aparcamento
automóvel em forma de carrossel, anunciado como a solução para os problemas de
estacionamento na cidade e os males crónicos do comércio local. Depois, foi a
destruição da mancha verde que ficava entre a Caldeiroa e a Fábrica do Minhoto
(que foi demolida discretamente, sem espaço para discussões sobre memória e património
industrial), para abrir o caminho para as betoneiras que ali farão nascer um
novo “cimentério” de Guimarães.
Política de cidade. Em vésperas de autárquicas, era bom que se trocassem umas ideias sobre o assunto.
[Crónica originalmente publicada no n.º 4 do Jornal de Guimarães em Revista, Julho de 2021]
Vista actual de Guimarães a partir do ponto onde até há pouco estava implantada a fábrica do Minhoto. |
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