A obra do fantasma do Marquês de Pombal em Guimarães



A mensagem pingou ontem à noite no meu e-mail. Li-a hoje. Prometia dar-me a conhecer a história da cidade onde vivo, os seus heróis, as origens das suas instituições, e anunciava que, por uns módicos 20 euros, eu passaria a ser “um vimaranense que sabe o que mais ninguém sabe”. Em chegando a tal promessa, porque vai contra os meus princípios (de que adianta o conhecimento, se não é partilhado?), deveria ter encaminhado a missiva para o caixote do lixo. Mas, só porque sou curioso, abri o pdf de amostra, com um exemplar do “Correio da História”, publicação cuja existência desconhecia por completo.

Primeira surpresa: o “Correio da História” anunciado pelo carteiro não existia, já que, a crer no que consta no seu cabeçalho, a tal publicação se chama “Correio de Guimarães”.

O artefacto é um mal-amanhado repositório de textos pescados com rede de arrasto na internet, na maior parte dos casos sem sequer se referir a sua origem. São peças atiradas a esmo, sem nexo, misturadas com textos republicados, com uma “linha” gráfica aparelhada a mascoto, sem lógica que se perceba, a não ser a de encher as indigentes doze páginas que ali se agregam. Não obstante a sugestiva cor de hortaliça do seu título, abster-me-ei de lhe chamar folha de couve, pelo muito apreço que tenho ao caldo verde.

Ansioso por novidades, lancei-me na leitura, seguindo o roteiro do costume – começo sempre pela primeira página, depois passo para a última e folheio de trás para a frente, em busca de algo que me desperte a atenção, o que não estava fácil. Até que chego à página 2, onde me deparo com algo de pasmar, algo de singular, algo capaz de abalar profundamente as minhas convicções. Sempre acreditei que a linha do tempo é contínua e crescente, sem paragens nem retrocessos, e que a morte é, sempre, uma partida sem retorno. Agora, não sei se duvide.

O texto que me despertou a atenção está etiquetado de editorial e leva título que sugere novidade: “A obra de Marquês de Pombal em Guimarães”. Assina-o o director da publicação e começa assim:

Todos reconhecemos o estilo pombalino nas fachadas dos prédios do Largo do Toural em frente à Basílica de S. Pedro.

Esta foi a grande obra do Marquês de Pombal, a mando do seu Rei D. José I, em Guimarães.

A história dos prédios que se erguem do lado do nascente do Toural é bem conhecida dos vimaranenses. Em Setembro de 1791, o juiz de fora de Guimarães, que então exercia interinamente as funções de corregedor de Guimarães (o magistrado que representava a coroa na comarca), decidiu aforar o chão onde estava assentada a muralha, para que os moradores da rua da Arrochela (vulgo, viela dos Caquinhos) pudessem expandir as suas residências na direção do Toural. A decisão não foi pacífica: os vereadores da Câmara de Guimarães reclamaram para a coroa contra a decisão do corregedor interino. Dessa reclamação resultou a autorização para que a muralha fosse demolida, permitindo que as casas da Arrochela se estendessem até ao limite do chão até aí ocupado pela muralha, e não mais, de modo a garantir que a grandeza do campo do Toural se manteria intacta. Para assegurar que assim se faria, a provisão régia que o determinava, datada de 19 de Julho de 1793, fez-se acompanhar da planta que as novas edificações teriam que respeitar. A muralha foi logo demolida e as obras deveriam ficar concluídas até ao dia de Nossa Senhora dos Prazeres – 3 de Abril – de 1796, já que assim o ordenou uma determinação municipal.

Aquela larga fachada, descrita pelo padre António Caldas como tendo “o aspecto de um só edifício regular e simétrico” e que o arquitecto Fernando Távora classificou como o único exemplo de arquitectura programada de Guimarães, tem bem marcados os traços da racionalidade iluminista que inspirou a reconstrução pombalina da cidade de Lisboa. Porém, resultando de um processo que se iniciou quando o ano de 1791 já ia bem andado e de um projecto delineado em meados de 1793 e erguido nos anos que se seguiram, não se vislumbra como pudesse ser, como afirma o editorialista, obra da “fantástica a visão deste primeiro ministro iluminado que num vasto Império, não se esqueceu de Guimarães”. A não ser que o tal “vasto Império” se situasse em regiões de além-túmulo, já que o Marquês entregou a alma ao Criador em 1782 e que D. José I já não reinava entre os vivos desde 1777...

Pela sua traça, nada impede que se classifique como pombalina a fachada singular do lado do nascente do campo do Toural. Mas não é obra do Marquês de Pombal, nem feita a mando do rei D. José I, posto que tanto o rei como o seu poderoso ministro estavam mortos e enterrados quando tal obra começou a ser cogitada. Foi ordenada por D. Maria I, aliás pelo príncipe regente D. João, futuro rei D. João VI, posto que a rainha sua mãe, por ser a louca, já não governava no tempo em que se concebeu e ergueu.

Nada tenho contra aqueles que tratam de ganhar a vida vendendo o que têm para vender, mesmo que seja banha da cobra. Mas julgo recomendável que saibam chamar pelo nome aquilo que querem vender. Neste caso, percebendo que ainda persistem dúvidas em relação ao nome a dar à coisa, permitam-me uma sugestão: não lhe chamem aquilo que não é – “Correio da História” ou “Correio de Guimarães”. Encontrem um título mais adequado ao produto. “Correio da História da Carochinha”, por exemplo.


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4 Comentários

Ahahahah! És tão mauzinho!
Eu? Não sou, não senhor, antes pelo contrário: sou brando, compassivo e mui pio.
Castelar disse…
Foi com muita categoria que chamou a atenção para as aldrabices que esse e-mail anunciava.
Muitos parabéns
Rogério Maciel disse…
Excelente meu amigo(se assim o posso tratar , embora não nos conheçamos físicamente).Fartei-me de rir com as suas ironias de fina graça , tal como a do Caldo Vêrde(de lei, ou seja o da Maria, que ela é que sabe fazê-lo como manda a Tradição), que eu também adoro.
Tal como o amigo, detesto êstes Manipuladôres da História Portuguêsa, Mentirosos modernaços, "iluminados" no sítio onde saem os dejectos...